Todo
aquele que ama a verdade odeia o erro. Falar assim parece tanto uma ingenuidade
como um paradoxo. Mas o ódio ao erro é a pedra de toque para reconhecer se uma
pessoa ama a verdade. Se alguém não ama a verdade, pode – até certo ponto –
dizer que a ama e talvez até se fazer acreditar. Mas fique tranquilo que cedo
ou tarde, dará sinais de não odiar o erro e com isto se entenderá que não ama a
verdade.
Quando
um homem, que costumava amar a verdade, não mais a ama, não declara logo a sua
defecção; começa a odiar sempre menos o erro. Com isto se trai.
As
complacências secretas fazem parte de uma das histórias menos conhecidas pelo
mundo.
Quando
um homem perde o amor pela doutrina que professava até ontem, seja boa, seja
má, conserva o símbolo da doutrina. Mas sente morrer em si a aversão a todas as
doutrinas contrárias.
Pelo
mesmo fato de ser a caridade uma coisa sublime, a realidade por excelência e a
medula dos ossos da criatura, por isso, também o abuso da caridade e o mau uso
do seu nome devem ser, especialmente e de modo singular, perigosos. “Optimi
corruptio pessima”. Quanto mais belo for o nome, tanto mais é terrível.
Portanto, se se revolta contra a verdade armando com o poder que recebeu para a
vida, que serviços não prestará à morte?
Ora,
volta-se contra a luz o nome da caridade, todas as vezes em que, em lugar de
atacar o erro, se chega a um acordo com este, sob o pretexto de poupar o homem.
Volta-se contra a luz o nome da caridade, todas as vezes em que se serve deste
para ceder na execração do mal. Habitualmente o gosta de ceder. A fraqueza é
uma coisa agradável à natureza decaída; além disso, a falta de horror ao erro,
ao mal, ao inferno, ao demônio, esta falta parece quase uma desculpa pelo mal
em nós mesmos, e aí se prepara um pretexto para escusar aquilo que acariciamos
em nossa alma. Em geral, a atenuação se localiza e o homem se amansa no
confronto da debilidade que o quer invadir, quando começa a chamar “caridade” à
acomodação universal com todas as fraquezas, ainda que distantes.
Aqui
está um dito de Davi que nunca se escuta: “Que diligitis Dominum, odite malum”
(“Vós que amais o Senhor, odiai o mal.”).
Quando
o mal entrou no mundo nasceu alguma coisa de irreconciliável. A caridade, o
amor para com Deus, exige, supõe, implica, ordena o ódio contra os inimigos de
Deus. Mesmo a nível humano, a amizade não se mede pela vivacidade da ternura,
mas antes pela comiseração no sofrimento. Se o amigo está contente, pode-se
mesmo faltar à ternura por um momento, e, no entanto, permanecem amigos. Se o
amigo sofre na sua pessoa ou na sua honra, devido a um acidente, a uma ofensa
qualquer e se se ressente apenas francamente com o seu mal, já não se é mais
amigo.
O
grande Josafá, cujas dimensões desconhecidas espantam, foi reprovado pelo
Senhor; tinha-se aliado com o rei de Israel. Aliar-se com o inimigo é o crime
escondido, o delito profundo. Existem crimes evidentes, crimes aparentes. Mas a
intimidade que possui tudo, tem um crime contra si, que é se aliar com o
inimigo. A medida do amor consiste em execrar o inimigo comum. O rei de Israel
era inimigo de Deus, mas Josafá se tinha esquecido do que Deus execrava.
A
aliança, a aproximação, a vizinhança espiritual do inimigo são crimes contra a
intimidade! Ora, esta é a glória quando se trata de Deus, e é mais íntimo de
Deus aquele que tem a maior reverência a Sua Majestade. Eis porque o pecado
contra o Santo Nome faz os santos estremecerem de horror! Aqueles que sentiram
o sopro da glória não se podem reconciliar com os crimes contra a glória. A
caridade os impele; eis porque são intratáveis, uma vez que ela os obriga, como
uma nobreza superior, a não consentir nas obras do ódio. Quem pactua com o erro
não pode conhecer o amor na sua plenitude nem na sua força soberana.
Depois
de uma longa guerra quando não se pode mais com ela, quando o cansaço pode
causar a vontade de acalmar-se, os reis foram vistos, fatigados pelos combates,
cederem esta ou aquela fortaleza. São concessões que fazem acabar a guerra sem
disparar os canhões. Mas as verdades não se tratam como fortalezas. Quando se
quer fazer a paz, em espírito e verdade, deseja-se a conversão e não a
acomodação. A justiça é inteiramente aquilo que é.
Nas
relações entre os homens, quando uma aproximação parece realizar-se sem que o culpado
tenha mudado em coisa nenhuma, quando se crê que um aperto de mão possa
substituir o arrependimento e o sentimento de culpa, esta aproximação falaz
acaba por revelar as dificuldades que traz consigo. É uma segunda separação
muito mais profunda do que a precedente. E acontece o mesmo com a doutrina. A
paz aparente, que a complacência compra e paga, é contrária tanto à caridade
como à justiça, porque cava um abismo onde antes havia um pequeno fosso. A
caridade requer sempre a luz, e a luz evita também as sombras do compromisso.
Toda a beleza é uma coisa inteira. A paz é, talvez, no final das contas, a
vitória mais segura sobre si mesma.
Que
se diria de um médico que, por caridade, poupasse a doença de um cliente? O
médico poderia dizer ao doente: “Depois de tudo, senhor, é preciso ter
caridade. O câncer que o corrói interiormente talvez o faça de boa fé. Vamos!
Seja mais gentil; não se deve ser tão duro. Ponha-se no lugar do câncer; nele
talvez está um animal que tem necessidade de consumir-lhe a carne e o sangue, e
o senhor terá a coragem de negar-lhe aquilo que lhe aproveita? O pobrezinho
poderia morrer de fome! Por outro lado sou inclinado a crer que o câncer esteja
de boa fé e o aconselho a ter um comportamento mais caridoso”.
É
o crime do século dezoito: não odiar o mal e fazer-lhe propostas. Mas há uma
única proposta para fazer ao mal: a de desaparecer. Qualquer compromisso com
ele é uma vitória parcial, mas a vitória total do mal, porque ele não quer
expulsar o bem, mas coabitar com ele. Um instinto secreto adverte-o de que,
cedendo alguma coisa, cede tudo. E desde o momento em que não é mais odiado,
sente-se adorado.
A
paz, como se disse, é a vitória segura de si mesma. É uma eliminação. Uma
eliminação tão completa que não se tem mais de lutar.”
(Ernesto
Hello. “O homem”, XL, Edição Perrin, 1941)