quinta-feira, 12 de novembro de 2015

82ª Nota - Amor à verdade e ódio ao erro


Todo aquele que ama a verdade odeia o erro. Falar assim parece tanto uma ingenuidade como um paradoxo. Mas o ódio ao erro é a pedra de toque para reconhecer se uma pessoa ama a verdade. Se alguém não ama a verdade, pode – até certo ponto – dizer que a ama e talvez até se fazer acreditar. Mas fique tranquilo que cedo ou tarde, dará sinais de não odiar o erro e com isto se entenderá que não ama a verdade.
Quando um homem, que costumava amar a verdade, não mais a ama, não declara logo a sua defecção; começa a odiar sempre menos o erro. Com isto se trai.
As complacências secretas fazem parte de uma das histórias menos conhecidas pelo mundo.
Quando um homem perde o amor pela doutrina que professava até ontem, seja boa, seja má, conserva o símbolo da doutrina. Mas sente morrer em si a aversão a todas as doutrinas contrárias.
Pelo mesmo fato de ser a caridade uma coisa sublime, a realidade por excelência e a medula dos ossos da criatura, por isso, também o abuso da caridade e o mau uso do seu nome devem ser, especialmente e de modo singular, perigosos. “Optimi corruptio pessima”. Quanto mais belo for o nome, tanto mais é terrível. Portanto, se se revolta contra a verdade armando com o poder que recebeu para a vida, que serviços não prestará à morte?
Ora, volta-se contra a luz o nome da caridade, todas as vezes em que, em lugar de atacar o erro, se chega a um acordo com este, sob o pretexto de poupar o homem. Volta-se contra a luz o nome da caridade, todas as vezes em que se serve deste para ceder na execração do mal. Habitualmente o gosta de ceder. A fraqueza é uma coisa agradável à natureza decaída; além disso, a falta de horror ao erro, ao mal, ao inferno, ao demônio, esta falta parece quase uma desculpa pelo mal em nós mesmos, e aí se prepara um pretexto para escusar aquilo que acariciamos em nossa alma. Em geral, a atenuação se localiza e o homem se amansa no confronto da debilidade que o quer invadir, quando começa a chamar “caridade” à acomodação universal com todas as fraquezas, ainda que distantes.
Aqui está um dito de Davi que nunca se escuta: “Que diligitis Dominum, odite malum” (“Vós que amais o Senhor, odiai o mal.”).
Quando o mal entrou no mundo nasceu alguma coisa de irreconciliável. A caridade, o amor para com Deus, exige, supõe, implica, ordena o ódio contra os inimigos de Deus. Mesmo a nível humano, a amizade não se mede pela vivacidade da ternura, mas antes pela comiseração no sofrimento. Se o amigo está contente, pode-se mesmo faltar à ternura por um momento, e, no entanto, permanecem amigos. Se o amigo sofre na sua pessoa ou na sua honra, devido a um acidente, a uma ofensa qualquer e se se ressente apenas francamente com o seu mal, já não se é mais amigo.
O grande Josafá, cujas dimensões desconhecidas espantam, foi reprovado pelo Senhor; tinha-se aliado com o rei de Israel. Aliar-se com o inimigo é o crime escondido, o delito profundo. Existem crimes evidentes, crimes aparentes. Mas a intimidade que possui tudo, tem um crime contra si, que é se aliar com o inimigo. A medida do amor consiste em execrar o inimigo comum. O rei de Israel era inimigo de Deus, mas Josafá se tinha esquecido do que Deus execrava.
A aliança, a aproximação, a vizinhança espiritual do inimigo são crimes contra a intimidade! Ora, esta é a glória quando se trata de Deus, e é mais íntimo de Deus aquele que tem a maior reverência a Sua Majestade. Eis porque o pecado contra o Santo Nome faz os santos estremecerem de horror! Aqueles que sentiram o sopro da glória não se podem reconciliar com os crimes contra a glória. A caridade os impele; eis porque são intratáveis, uma vez que ela os obriga, como uma nobreza superior, a não consentir nas obras do ódio. Quem pactua com o erro não pode conhecer o amor na sua plenitude nem na sua força soberana.
Depois de uma longa guerra quando não se pode mais com ela, quando o cansaço pode causar a vontade de acalmar-se, os reis foram vistos, fatigados pelos combates, cederem esta ou aquela fortaleza. São concessões que fazem acabar a guerra sem disparar os canhões. Mas as verdades não se tratam como fortalezas. Quando se quer fazer a paz, em espírito e verdade, deseja-se a conversão e não a acomodação. A justiça é inteiramente aquilo que é.
Nas relações entre os homens, quando uma aproximação parece realizar-se sem que o culpado tenha mudado em coisa nenhuma, quando se crê que um aperto de mão possa substituir o arrependimento e o sentimento de culpa, esta aproximação falaz acaba por revelar as dificuldades que traz consigo. É uma segunda separação muito mais profunda do que a precedente. E acontece o mesmo com a doutrina. A paz aparente, que a complacência compra e paga, é contrária tanto à caridade como à justiça, porque cava um abismo onde antes havia um pequeno fosso. A caridade requer sempre a luz, e a luz evita também as sombras do compromisso. Toda a beleza é uma coisa inteira. A paz é, talvez, no final das contas, a vitória mais segura sobre si mesma.
Que se diria de um médico que, por caridade, poupasse a doença de um cliente? O médico poderia dizer ao doente: “Depois de tudo, senhor, é preciso ter caridade. O câncer que o corrói interiormente talvez o faça de boa fé. Vamos! Seja mais gentil; não se deve ser tão duro. Ponha-se no lugar do câncer; nele talvez está um animal que tem necessidade de consumir-lhe a carne e o sangue, e o senhor terá a coragem de negar-lhe aquilo que lhe aproveita? O pobrezinho poderia morrer de fome! Por outro lado sou inclinado a crer que o câncer esteja de boa fé e o aconselho a ter um comportamento mais caridoso”.
É o crime do século dezoito: não odiar o mal e fazer-lhe propostas. Mas há uma única proposta para fazer ao mal: a de desaparecer. Qualquer compromisso com ele é uma vitória parcial, mas a vitória total do mal, porque ele não quer expulsar o bem, mas coabitar com ele. Um instinto secreto adverte-o de que, cedendo alguma coisa, cede tudo. E desde o momento em que não é mais odiado, sente-se adorado.
A paz, como se disse, é a vitória segura de si mesma. É uma eliminação. Uma eliminação tão completa que não se tem mais de lutar.”

(Ernesto Hello. “O homem”, XL, Edição Perrin, 1941)