No Brasil, a Idade Média ainda é citada
por muitos néscios como um tempo de ignorância e barbárie, um tempo vazio, um
tempo em que a Igreja escondeu os conhecimentos que naufragaram com o fim do
Império Romano para dominar o “povo”. Nesse movimento consciente e ideológico
em direção às trevas, o clero teve como aliado principal a nobreza feudal.
Juntos, nobreza e clero governaram com coturnos sinistros e malévolos todo o
ocidente medieval, que permaneceu assim envolto em uma escuridão de mil anos,
soterrado, amedrontado e preso a terra num trabalho servil humilhante.
Quem ainda acredita piamente nesse
amontoado de tolices ficará agradavelmente surpreso, espero, com o tema desse
trabalho, que não poderia ser mais propício. Minhas perguntas básicas serão:
existiu educação na Idade Média? E ciência? E as crianças? É incrível, mas
há quase quarenta anos atrás o próprio Jacques Le Goff perguntou: “teria havido
crianças no Ocidente Medieval?” Seguindo a trilha deixada por Philippe Ariès,
ele buscou a criança na arte e não a encontrou. É verdade. Apressadamente
concluiu então que a criança foi um produto da cidade e da burguesia e,
portanto, o mundo rural não a conheceu. Pior: a conheceu sim, mas a desprezou,
marginalizando-a.
Deixo claro então que minha perspectiva
será bastante diferente. Responderei sim a todas àquelas perguntas,
opondo-me a Jacques Le Goff e a Philippe Ariès. Para provar isso, dividi minha
narrativa em duas partes: primeiro, busquei a condição infantil registrada pela
História na Alta Idade Média (séculos V-X) para, a seguir, tratar da
estruturação das ciências que Ramon Llull (1232-1316) apresentou a seu filho
Domingos quando, em um ato de puro amor paterno, escreveu um livro para ele,
a Doutrina para crianças.
Falei há pouco de amor paterno. O amor é
uma forma muito profunda e especial de afeto, difícil de ser descrito, difícil
de ser registrado a não ser nas emoções daqueles que o compartilham. Por isso,
a História registra sempre o que se veste, onde se vive, o que se come, mas
dificilmente narra como se ama, especialmente a intensidade e a forma do amor.
Os tipos de textos consultados pelos historiadores - as Crônicas, por
exemplo - estão mais atentos aos acontecimentos importantes, aos personagens e
à política. Assim, ofereceram pouco espaço para o mundo infantil, deixando
muitas perguntas que não puderam ser respondidas satisfatoriamente. Por
exemplo: como pais e filhos exprimiam seus carinhos, suas incompreensões? De
que forma as crianças apreenderam o mundo existente? Como reagiram à escola e
aos estudos?
De qualquer maneira, o fato é que,
historicamente, o papel da criança sempre foi definido pelas expectativas dos
adultos, e esse anseio mudou bastante ao longo da história, embora a família
elementar e o amor tenham existido em todas as épocas. Vejamos então o caso
medieval.
A primeira herança da Antiguidade não é
na da boa: a vida da criança no mundo romano dependia totalmente do desejo do
pai. O poder do “pater familias” era absoluto: um cidadão não tinha
um filho, o tomava. Caso recusasse a criança - e o fato era bastante comum -
ela era enjeitada. Essa prática era tão recorrente que o direito roma no se
preocupou com o destino delas. E o que acontecia à maioria dos enjeitados? A
morte.
A segunda herança que a Idade Média
herda da Antiguidade, a cultura bárbara, foi-nos passada especialmente por
Tácito. Ele nos conta que a tradição germânica em relação às crianças era um
pouco melhor que a romana. Os germanos não praticavam o infanticídio, as
próprias mães amamentavam seus filhos e as crianças eram educadas sem distinção
de posição social. O povo germânico era composto por um conjunto de lares, com
dois poderes distintos: o matriarcal, exercido no seio da família, e o
patriarcal, predominante na política e na organização social. No entanto, o
destino das crianças naqueles clãs, como na cultura romana, também dependia da
vontade paterna (direito de adoção, de renegação, de compra e venda). A criança
aceita ficava aos cuidados dos par entes paternos (“agnatos”) e o destino dos
bastardos, órfãos e abandonados era entregue aos parentes maternos,
especialmente a tios e avós maternos.
Dessas duas tradições culturais que se
mesclaram e fizeram emergir a Idade Média, concluo que o “status” da
criança naquelas sociedades antigas era praticamente nulo. Sua existência
dependia do poder do pai: se fosse menina ou nascesse com algum problema
físico, poderia ser rejeitada. Seu destino, caso sobrevivesse, era abastecer os
prostíbulos de Roma e o sistema escravista. Até o final da Antiguidade as
crianças pobres eram abandonadas ou vendidas; as ricas enjeitadas - por causa
de disputas de herança - eram entregues à própria sorte.
Nesse contexto histórico-cultural é que
se compreende a força e o impacto do cristianismo, que rompeu com essas duas
tradições. O Cristo disse:
Em verdade vos digo que, se não vos
converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no
Reino dos Céus. Aquele, portanto, que se tornar pequenino como esta criança,
esse é o maior no Reino dos Céus. (Mt. 18, 1-4).
A tradição cristã abriu, portanto, uma
nova perspectiva à criança, uma mudança revolucionária. No entanto, foi um
processo bastante lento, um processo civilizacional levado a cabo
pela Igreja. Primeiro, por força das circunstâncias. Por exemplo, dos séculos V
ao VIII, na Normandia, o índice de mortalidade infantil era muito elevado, 45%,
e a expectativa de vida bem pequena, 30 anos. À primeira vista, esses dados
arqueológicos pode riam sugerir ao historiador um sentimento de descaso para
com a criança: a regularidade da morte poderia criar nos espíritos de então uma
apatia, um medo de se apegar a algo tão frágil que poderia morrer à primeira
doença.
Paradoxalmente, ao invés disso, a
documentação nos mostra que havia um grande apego dos pais aos filhos, apesar
da mortalidade infantil. Em sua “História dos Francos”, Gregório de Tours
nos conta o sentimento de tristeza e a lamentação de Fredegunda (concubina e
depois esposa do rei dos francos Chilperico), quando da morte de crianças:
Essa epidemia que começou no mês de
agosto a tacou em primeiro lugar a todos os jovens adolescentes e provocou sua
morte. Nós perdemos algumas criancinhas encantadoras e que nos eram
queridas, a quem nós havíamos aquecido em nosso peito, carregado em nossos
braços ou nutrido por nossa própria mão, lhes administrando os alimentos com um
cuidado delicado [...] O rei Chilperico também esteve gravemente doente.
Quando entrou em convalescença, seu filho mais novo, que não era ainda
renascido pela água e pelo Espírito Santo, caiu enfermo. Assim que melhorou um
pouco, seu irmão mais velho, Clodoberto, foi atingido pela mesma doença, e sua
mãe Fredegunda, vendo-o em perigo de morte e se arrependendo tardiamente, disse
ao rei: “A misericórdia divina nos suporta há muito tempo, nós que fazemos o
mal, porque sempre ela nos tem advertido através das febres e outras doenças,
mas sem que nos corrijamos. Nós perdemos agora os nossos filhos, eis que
as lágrimas dos pobres, as lamentações das viúvas e os suspiros dos órfãos os
matam e não nos resta esperança de deixar os bens para ninguém. Nós
entesouramos sem ter para quem deixar. Os tesouros ficarão privados de
possuidor e carregados de rapina e maldições! Nossas adegas não abundam em
vinho? Nossos celeiros não estão repletos de trigo? Nossos tesouros não estão
abarrotados de ouro e de prata, de pedras preciosas, de colares e outras jóias
imperiais? Nós perdemos o que tínhamos de mais belo! Agora, por favor, venha!
Queimemos todos os livros de imposições iníquas e que nosso fisco se contente
com o que era suficiente ao pai e rei Clotário.” (Gregório de
Tours, “Historiae”,V, 34)
Pois bem. Fredegunda, uma das mulheres
mais cruéis da História, apesar de filha de seu tempo bárbaro, chora a morte de
seus filhos e afirma que perdeu o que tinha de mais belo. Mesmo nessa
aristocracia merovíngia rude e cruel – no pior sentido da palavra – há espaço
para amor materno.
Por sua vez, fora do mundo secular, um
espaço social lentamente impôs uma nova perspectiva à educação infantil: o
monacato. Os monges criaram verdadeiros “jardins de infância” nos mosteiros,
recebendo indistintamente todas as crianças entregues, vestindo-as,
alimentando-as e educando-as, num sistema integral de formação educacional.
As comunidades monásticas célticas foram
as que mais avançaram nesse novo modelo de educação, pois se opunham
radicalmente às práticas pedagógicas vigentes das populações bárbaras, que
defendiam o endurecimento do coração já na infância. Pelo contrário, ao invés
de brutalizar o coração das crianças para a guerra e a violência, os monges o
abriam para o amor e a serenidade.
As crianças eram educadas por todos do
mosteiro até a idade de quinze anos. A Regra de São Bento prescreve diligência
na disciplina: que as crianças não apanhem sem motivo, pois “não faças a
outrem o que não queres que te façam.” Toco aqui em um ponto importante e de
grande discussão na História da Educação. O sistema medieval e monástico previa
a aplicação de castigos. Na Bíblia há passagens sobre os castigos com vara que
devem ser aplicados aos filhos; na Regra de São Bento há várias passagens
(punição com jejuns e varas, pancadas em crianças que não recitarem
corretamente um salmo), e esse ponto foi muito destacado e criticado pela
pedagogia moderna, que, no entanto, não levou em consideração as circunstâncias
históricas da época. Por exemplo, Manacorda interpreta os castigos do período
antigo e medieval como puro sadismo pedagógico, linha de interpretação que
permaneceu ao lado da imagem do monge medieval como uma pessoa frustrada e
desiludida amorosamente e que, por esse motivo, buscava a solidão do mosteiro.
Naturalmente isso se deve a um
anacronismo e preconceito que não condizem com a postura de um historiador sério.
Basta buscar os textos de época que vemos a felicidade dos egressos dos
mosteiros pelo fato de terem sido amparados, criados e educados. Darei apenas
dois breves exemplos. Ao se recordar do mosteiro onde passou sua infância, São
Cesário de Arles (c. 470-542) diz:
Essa ilha santa acolheu minha pequenez
nos braços de seu afeto. Como uma mãe ilustre e sem igual e como uma
ama-de-leite que dispensa a todos os bens, ela se esforçou para me educar e me
alimentar.
Por sua vez, Walafried Strabo (806-849),
então jovem monge, nos conta em seu “Diário de um Estudante”:
Eu era totalmente ignorante e fiquei
muito maravilhado quando vi os grandes edifícios do convento (...) fiquei muito
contente pelo grande número de companheiros de vida e de jogo, que me acolheram
amigavelmente. Depois de alguns dias, senti-me mais à vontade (...) quando o
escolástico Grimaldo me confiou a um mestre, com o qual devia aprender a ler.
Eu não estava sozinho com ele, mas havia muitos outros meninos da minha idade,
de origem ilustre ou modesta, que, porém, estavam mais adiantados que eu. A
bondosa ajuda do mestre e o orgulho, juntos, levaram-me a enfrentar com zelo as
minhas tarefas, tanto que após algumas semanas conseguia ler bastante
corretamente (...) Depois recebi um livrinho em alemão, que me custou muito
sacrifício para ler mas, em troca, deu-me uma grande alegria...
Esses são apenas dois de muitos exemplos
que contam a felicidade e a alegria que os medievais sentiram com o fato de
terem tido a sorte de serem acolhidos em um mosteiro. Assim, devemos sempre
confrontar em retrospecto as regras com a vida cotidiana, o sistema
institucional com o que as pessoas pensavam dele, para então construirmos um
juízo de valor mais adequado e menos sujeito a anacronismos.
Para completar o entendimento do sentido
civilizacional dos mosteiros medievais, basta confrontarmos sua vida
cotidiana - de educação e disciplina voltada para uma formação ética e moral
das crianças - com o mundo exterior. Por exemplo, no período carolíngio
(séculos VIII a X), apesar do avanço da implantação da família conjugal simples
(modelo cristão) com uma média de 2 filhos por casal e um período de
aleitamento de dois anos, a prática do infanticídio continuava comum, a idade
média dos casamentos era muito baixa (entre 14 e 15 anos de idade), a poligamia
e a violência sexual eram recorrentes, pelo menos na aristocracia e ainda havia
a questão da escravidão de crianças. Confronte você, caro leitor, essa
realidade com a vida de uma criança em um mosteiro.
Por sua vez, os bispos carolíngios do
século IX tentaram regulamentar o casamento cristão, redigindo uma série de
tratados (espelhos). Neles, o casamento era valorizado, a mulher reconhecida
como pessoa com pleno direito familiar e em pé de igualdade com o marido e a violência
sexual denunciada como crime grave e do âmbito da justiça pública. Para o nosso
tema, o que interessa é que as crianças também foram objeto de reflexão nesses
espelhos: a maternidade foi considerada um valor (“charitas”) e o casal tinha a
obrigação de aceitar e reconhecer os filhos.
Assim, a ação da ordem clerical foi
dupla: de um lado, os bispos lutaram contra a prática do infanticídio, de
outro, os monges revalorizaram a criança, que passou por um processo de
educação direcionada, de cunho integral e totalmente igualitária – por exemplo,
as escolas monacais carolíngias davam preferência a crianças filhas de escravos
e servos ao invés de filhos de homens livres, a ponto de Carlos Magno ser
obrigado a pedir que os monges recebessem também para educar crianças filhas de
homens livres. Estes séculos da Alta Idade Média foram cruciais para a
implantação do modelo de casamento cristão conhecido por todo o mundo
ocidental, para a valorização da mulher como parceira e igual do marido e para
a ideia de criança como ser próprio e com necessidades pedagógicas específicas.
Por fim, a sociedade era pensada como o conjunto de pessoas casadas (“ordo
conjugatorum”), e a criança tinha um papel fundamental nessa estrutura, pois
era o fim último da união.
Mulher, criança, minorias revalorizadas
na Idade Média em relação à Antiguidade. Para completar esse quadro
compreensivo, quero responder à terceira pergunta feita no início: qual era o
conceito de educação que alicerçava esse novo sistema pedagógico medieval? Essa
é uma resposta relativamente mais simples. Para os homens da época, as palavras
eram transparentes: havia um prazer muito grande em saborear o sentido
etimológico delas. Os intelectuais de então diziam que o homem é um ser que
esquece suas experiências. Ele consegue resgatá-las através da linguagem.
Assim, a expressão educação era entendida como estando associada à sua raiz
etimológica latina: “educe”, “fazer sair”. Como o conhecimento já existia
inato no indivíduo, restava responder à seguinte pergunta: de que modo o
estudante era conduzido da ignorância ao saber? Como o aluno aprendia? Essa era
a questão básica dos educadores medievais. Preocupados com a forma da
aquisição, os pedagogos de então tiveram uma importante consciência: cabia ao
professor “acender uma centelha” no estudante e usar seu ofício
para formar e não asfixiar o espírito de seus alunos. Muito
moderna a educação medieval!
(Ricardo
da Costa, Prof. Adjunto de História Medieval da UFES)