segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

354ª Nota - A competência da Santa Sé em matéria de arte sacra


Na polêmica mundial, que tem interessado artistas e pensadores, relativa à influência moderna na arte sacra, a Suprema Congregação do Santo Ofício baixou a importante Instrução que esta folha publicou em seu último número. Um dos aspectos dessa Instrução que tem sido mais discutidos em certos meios consiste na competência da Santa Sé quanto ao assunto. Assim, é de real interesse transcrever o comentário que a esse propósito escreveu Monsenhor Celso Benigno Luigi Constantini (+1958), Cardeal e Consultor do Santo Oficio, no “Osservatore Romano”.

É fora de dúvida a competência absoluta da Santa Sé em matéria de arte sacra. Com efeito, a Igreja, por ser uma Sociedade perfeita, tem o direito e o dever de formular leis para os seus membros. Estas não suprimem a liberdade, mas a regulam. Servi legum sumus – dizia Cícero – ut liberi esse possimus. As leis são para os homens o que são os trilhos para a locomotiva; ninguém pensa que os trilhos tiram a liberdade à locomotiva.

A Congregação do Santo Ofício jamais cogitou de legislar em matéria de arte enquanto arte. Mas, quando esta pretende entrar nas igrejas com contrafacções sacrílegas, então cai naturalmente sob o poder da Autoridade Eclesiástica, a quem compete salvaguardar a pureza da fé e da moral. O mesmo ocorre com a literatura e a música, especialmente quando uma e outra se associam ao culto. O Bem-aventurado Pio X proscreveu das igrejas a música teatral, e ninguém considerou ilógica sua intervenção.

A Santa Igreja deixa, entretanto, ampla liberdade aos artistas para se exprimirem da maneira que julgam mais digna e que corresponde melhor ao seu temperamento. Toda a História o demonstra, desde os primeiros tempos. Emile Mâle diz que Jesus Cristo, nos primeiros séculos do Cristianismo, é representado na Grécia como um jovem imberbe, que faz lembrar a tradição clássico-pagã. Ao passo que, nos mosaicos de Jerusalém e da Síria, Nosso Senhor não é mais um adolescente grego, mas um semita, com a barba e os cabelos compridos. A graça grega acrescentou-se a dignidade varonil.

A arte helênica havia representado a Virgem com a túnica e as vestes das matronas de Antioquia e Alexandria. A arte de Jerusalém e da Síria apresentam-na coberta com o longo véu sírio, como as jovens de Jerusalém (E. Mâle: La fin du Paganisme en Gaule, Flammarion, 1950).

Esta liberdade de tipos, modos e técnicas levou os artistas de todos os tempos a interpretar os mistérios cristãos não tanto conforme a arqueologia e a etnologia, mas tendo em vista a necessidade de aproximar dos fiéis os mistérios sagrados e favorecer-lhes a piedade a instrução.

Rafael, para pintar a Escola de Atenas e o Triunfo da Eucaristia nas salas da Signatura, seguiu as sugestões dos humanistas e dos teólogos, mas ninguém irá imaginar que essas sugestões tenham feito arrefecer a inspiração de Rafael.

A Instrução define inicialmente a arte sacra: esta existe na medida em que assegura a dignidade da casa de Deus e favorece a fé e a piedade dos fiéis. Seu fim, claro e indiscutível, lhe especifica o caráter.

O Bem-aventurado Pio X põe-no em relevo de modo admirável, enunciando a parte negativa da arte sacra: “nada que perturbe ou sequer diminua a piedade e devoção dos fiéis deve entrar na igreja”.

Sua Santidade Pio XII precisa a sua finalidade na grande Encíclica Mediator Dei, convidando os artistas a inspirar-se na religião: “resultará assim que as artes humanas, por assim dizer vindas do céu, resplandeçam com luz serena, elevem grandemente a civilização humana, contribuam para a glória de Deus e a santificação das almas”. Pois assim é que as artes são verdadeiramente conformes com a religião quando estão ao serviço, “como nobres servas, do culto divino”.

O mesmo Soberano Pontífice Pio XII, na audiência que concedeu no dia 8 de abril de 1952 aos artistas da IV Quadrienal Romana, voltou a falar do conceito de arte cristã com estas palavras profundas: “Não é necessário que expliquemos a vós — que o sentis em vós mesmos, muitas vezes como nobre tormento — uma das características essenciais da arte, que consiste em certa afinidade intrínseca com a religião e faz dos artistas, de algum modo, os intérpretes das perfeições infinitas de Deus e particularmente de Sua beleza e harmonia. A função de toda arte é, com efeito, romper o círculo estreito e angustiante do finito, no qual está encerrado o homem, enquanto vive aqui em baixo, e abrir uma janela ao espírito que aspira ao infinito. Resulta daí que todo esforço — em realidade vão — que vise negar ou suprimir qualquer relação entre religião e arte, resultaria em uma diminuição da própria arte, pois, seja qual for a beleza artística que se queira tomar no mundo, na natureza, no homem, para exprimi-la por meio de sons, de cores ou de um jogo de massas, não poderá separar-se de Deus, desde que tudo o que existe está ligado a Ele por relações essenciais. Como na vida, não há portanto na arte — quer seja entendida como expressão do sujeito, quer como interpretação do objeto — o exclusivamente humano, o exclusivamente natural ou imanente. A arte se eleva ao ideal e à verdade artística com uma probabilidade de feliz êxito tanto maior quanto mais claramente refletir o infinito, o divino. Quanto mais vive o artista a religião, tanto melhor está preparado para falar a linguagem da arte, entender-lhe as harmonias, comunicar-lhe os frêmitos... O artista é por si mesmo um privilegiado entre os homens; mas o artista cristão é, em certo sentido, um eleito, porque é próprio dos Eleitos contemplar, apreciar e exprimir as perfeições de Deus. Procurai a Deus aqui em baixo na natureza e no homem, mas sobretudo em vós mesmos; não tenteis em vão exprimir o humano sem o divino, nem a natureza sem o Criador; harmonizai, pelo contrário, o finito com o infinito, o temporal com o eterno, o homem com Deus, e assim atingireis a verdade da arte, a verdadeira arte”.

A Instrução recorda solenes decisões de Concílios e Sínodos, e cita as disposições do Código de Direito Canônico, que constituem o corpus juris da arte sacra, entendida como precioso e venerável instrumento do culto externo.

Convém, entretanto, notar que nem toda arte sacra é litúrgica e que, quando não se enquadra nas exigências e funções do culto, está menos sujeita às leis litúrgicas.

Existe a arte sacra histórica ou narrativa, como a Missa de Bolsena, de Rafael; existe a arte da devoção privada, como os medalhões de núpcias de Boticelli; há a arte religiosa romântica, como o Angelus de Millet ou o Refugium peccatorum de Nono. Essa arte se desenvolve fora das igrejas e basta que não contenha algum falso dogma e tenha o cunho da honestidade e da dignidade que Leonardo chamava decoro e Michelangelo, conveniência.

Ao lado desta arte sacra que chamaremos exterior, existe a arte propriamente litúrgica ou eclesiástica, isto é, a que, como a música, a literatura, o drama, vive nas igrejas e para as igrejas, preparando o lugar para o próprio culto (arquitetura), pintando e esculpindo as imagens sagradas para serem objeto de veneração ou explicação do catecismo (biblia pauperum). A esta arte se acrescenta a variedade dos objetos eclesiásticos que fez a glória do artesanato cristão (cruzes, cálices, ostensórios, candelabros, turíbulos, etc.).

O Cristianismo, essa idéia-força, criou uma nova civilização e criou sua arte própria, infundindo alma nas máscaras apáticas da beleza clássica.

O templo pagão, que era o local reservado à divindade, torna-se igreja, isto é, o lugar para as reuniões litúrgicas e de catecismo dos fiéis. Nas galerias obscuras das Catacumbas brilha a intensa luz da vida imortal. As lágrimas da dor humana caem suavizadas ao pé da Cruz.

Michelangelo disse: “A arte verdadeira e nobre é religiosa. Não é senão uma cópia da perfeição de Deus, uma sombra do pincel com que Ele pinta, uma melodia, uma inspiração de acordo com Ele” (Grim., “Vida de Buonarotti”).

Ao invés, quando a pretensa arte sacra moderna, esquecendo o grande passado e extraviando-se na floresta selvagem das artes figurativas cubistas, abstracionistas, etc., trai seu caráter e fim, deforma e degrada as veneráveis imagens de Jesus Cristo, da Virgem Maria e dos Santos, suscitando a aversão e o escândalo, como visões blasfematórias, condena-se ela a si mesma e cai sob a sanção do can. 1279: Que o Bispo não permita jamais que sejam expostas nas igrejas ou noutros lugares sagrados imagens de falsos dogmas, e que não tenham a dignidade e honestidade necessárias e que constituam para o povo simples uma ocasião de erro.

Um filósofo ilustre escreveu: “É evidente que uma obra de arte tem um valor tanto maior quanto mais rica é a idéia da verdade universal que vive na individualidade de sua representação. O importante é que os dois valores não se contrariam, isto é, que para enriquecer a idéia da verdade não se lhe superponham concepções abstratas que lhe velem a luz” (B. Giuliano, “A arte e a transcendência da verdade”, Estética, pág. 442).

Sua Santidade Pio XII declara que é preciso “respeitar as exigências da comunidade cristã mais do que a opinião e o gosto pessoal dos artistas” (Mediator Dei).

Na arte cristã primitiva o Crucifixo era representado como um triunfador, com a coroa real sobre a cabeça: regnavit a ligno Deus. Repugnava representar Jesus Cristo humilhado sobre a cruz. Num painel das colunas de São Marcos em Veneza (século VI), Nosso Senhor está colocado na cruz sob a forma de Cordeiro. Mais tarde, porém, estabeleceu-se o costume de representar o Crucifixo factus pro nobis maledictum (Gal. 3, 13). Grunewal, no século XVI, pintou um Crucifixo com realismo revoltante. 

De qualquer modo devem os artistas abster-se de deformar e degradar a humanidade de Cristo, da Mãe Imaculada de Deus, e devem fugir ao costume, infelizmente muito difundido, de representar os Apóstolos e os Santos com fisionomias simplórias e com mãos e pés desproporcionados.
Catolicismo n° 22, outubro de 1952