quarta-feira, 13 de julho de 2016

225ª Nota - Gostos e Opiniões



A discussão era fútil, mas dentro dela creio ter encontrado o nó de um grave problema. Se o leitor quiser me acompanhar com atenção, prometo demonstrar que aquela discussão continha em germe um elemento que tem causado no mundo suicídios, apostasias, revoluções e incêndio de cidades inteiras.

A cena que contei, em si mesma, não espanta, porque cada um de nós já presenciou, centenas de vezes, discussões que atingem paroxismos por causa de objetos insignificantes. O que surpreende é justamente a enorme desproporção entre o objeto e a veemência do litígio. Dir-se-ia que nessas ocasiões uma estranha atmosfera  se interpõe entre as pessoas, produzindo fantásticas refrações, e daí resulta que um par de chinelos ou um simples endereço avultam como se fossem montanhas enormes erguidas no meio dum caminho.

Achei- me pensando na cena que acabara de assistir e me perguntando qual seria o verdadeiro motivo que levara Afonso a defender, com a galhardia dum paladino, a posição duma loja de sapatos. É fácil demonstrar que a loja não pesava. Se no dia seguinte o jornal anunciasse o seu incêndio, estou certo que Afonso não chegaria em casa torcendo as mãos de desespero e chorando convulsivamente. Dona Antônia talvez dissesse: ­– Que pena.  Logo a casa que você tinha acertado a fôrma.

O objeto da discussão, entretanto, tinha sofrido uma alteração mais radical do que a simples mudança de quarteirão que tanto excitara meu amigo. A loja, portanto, não pesava; o objeto não tinha proporção com o entusiasmo de Afonso. Procuremos então o motivo do fenômeno no próprio sujeito, isto é, dentro do meu amigo Afonso. Estaria em jogo o prestígio de individuo bem informado? Em parte, talvez.

Há sempre satisfação em estar sempre informado, a par das coisas, inserido nos fatos, como também uma alegria ainda maior em ser o próprio portador da informação, sobretudo quando é nova. No caso imaginado, de incêndio, Afonso viria para casa mais satisfeito do que nos dias comuns, porque estaria trazendo uma novidade; sentir-se-ia o depositário do novo dentro da terrível e acabrunhante sonectude do mundo. Uma nova tem sempre uma qualquer coisa de boa nova, ainda que seja incêndio ou morte.

Lembro-me de um parente meu nos tempos da grande epidemia de gripe, que chegava em casa excitado e, logo que assomava à porta, deixava cair no meio do silêncio o nome de algum amigo arrebatado pela gripe. Não digo que ele tivesse maus sentimentos; tenho, ao contrário, abundantes recordações de sua bondade; mas creio ter surpreendido no brilho do seu olhar no dia em que a epidemia lhe abateu duma vez uns sete conhecidos.

Gostamos de carregar novidades e por isso é compreensível que tenhamos satisfação em colher e guardar informações. Mas, no caso da discussão sobre a loja de sapatos, essas considerações não se aplicam se não parcialmente. Não havia novidade, e como objeto de conhecimento, era magra coisa, a loja, para alimentar vaidades, mesmo levando em conta que há vaidade para tudo. Não creio por tanto que Afonso tenha defendido uma erudição topográfica, uma espécie de prestígio cadastral. Nunca ouvi falar de homem que se celebrizasse e merecesse o bronze por ter conhecido no mínimo detalhe a rua da Carioca. Não; decididamente não se tratava da importância própria do objeto nem do prestígio de ordem intelectual, que sempre guarda alguma proporção com o objeto.

Mas se a razão do fenômeno não está no objeto, só pode estar dentro do sujeito: procuremos melhor. Analisemos; vejamos em que ponto do seu interior o sujeito sofreria se a loja estivesse localizada em outro quarteirão. Seria na memória? Também não o creio. Mais de uma vez ouvi Afonso aludir à sua falta de memória com ar satisfeito. Penso mesmo que exista um tipo de vaidade para a falta de memória, pois os casos de esquecimento são geralmente contados entre sorrisos divertidos.

Então, não sendo o objeto, e também dentro do sujeito não sendo conhecimento ou memória, qual seria o ponto em jogo, a parte de Afonso tão vivamente empenhada na discussão?

Ora, creio ter achado a solução: Afonso defendia uma opinião e o ponto nevrálgico de sua pessoa era a vontade.

A opinião é uma atitude que o sujeito toma diante do objeto sem que o objeto importe. Não se mede pelo objeto, não tem proporção com ele. Precisa do objeto para sair do sujeito e voltar ao sujeito. Ter razão importa sem que o objeto importe. Tanto faz um quadro de Portinari, a existência de Deus ou o horário dos bondes de Catumbi. A cólera provocada pela religião ou pela arte moderna é sem dúvida mais forte e mais duradoura do que aquela que nascera a propósito de uma loja de sapatos, mas isso não prova o contrário do que eu disse. Não há nesses casos maior proporção objetiva, e sim um grau maior de irritação dentro do sujeito provocado pela insistência do fenômeno. É fácil imaginar como Afonso andaria nervoso, e cada dia mais exaltado, se não pudesse verificar  sua asserção na lista telefônica, e se encontrasse a cada instante alusões, livros escritos, salões de exposição, campanário de catedrais, tudo organizado e construído a partir da falsa situação de sua sapataria!

Podemos então localizar a ponta da raiz, o fibrilo nervoso onde mora o princípio de uma opinião. Eliminadas as outras partes de nosso interior, sobra aquela que é mais irritável, mais ferida, aquela que vive a esbarrar na limitação incômoda dos objetos: a vontade.

 A opinião é segregada pela vontade; não vem do conhecimento mas do apetite. O mecanismo da opinião pode ser descrito como interposição da vontade entre a inteligência e o objeto. A justa proporção com o objeto fica prejudicada, só podendo existir quando a inteligência está em livre confronto com o objeto, isto é, na contemplação.

 Gostaria de tornar bem clara a imensa gravidade desse problema e a importância vital do restabelecimento, na estrutura de nossa pessoa, desse respeito pelo objeto, dessa abertura para fora pela qual tanto a inteligência quanto a vontade, a boa vontade, aspiram à suma objetividade. O grande desvio do pensamento moderno tem origem nessa inversão interior, pela qual a vontade se arroga um direito de conquista onde somente à inteligência cabe o primado. Todos nós, mais ou menos, estamos impregnados de idealismo filosóficos até a medula dos ossos, estamos convencidos que nossa dignidade mais alta reside nesse subjetivismo obstinado que tenta reduzir todas as coisas do céu e da terra a meia dúzia de opiniões. Muita gente pensa que isso é grandeza e marca de caráter e que a personalidade humana se define por esse fechamento diante do objeto e se engrandece por essa deformação interior. Diante dos objetos mais simples o homem liberal, que agasalha suas opiniões, que desconfia de tudo que não seja o morno recôncavo de sua interioridade, cai em guarda numa posição crispada; a vontade mete-se de permeio entre a porta dos sentidos e a inteligência, e como o seu caminho é mais curto, ou porque seja ela mais ágil, sua sugestão chega antes do conceito e gera o preconceito. A inteligência perde a liberdade e a vontade então convence o sujeito que ele é um livre-pensador.

 É nessa questão nevrálgica da liberdade que a vontade mais se excita, e, no diálogo interior, clama que lhe pertence exclusivamente a decisão nessa matéria. Como na vida exterior vive sendo ofendida, esbarrando, chocando-se, atritando-se, a vontade procura se desforrar e volta-se para dentro. Volta-se contra o próprio sujeito, enrola-se no cerne nobre da pessoa e morde a inteligência. A liberdade psicológica e voluntariosa, nascida no conflito com as objetividades, substitui a liberdade ontológica que tem raiz na adequação entre a inteligência e o ser. O primado da inteligência é usurpado, e então, em vez do reto juízo, nasce a opinião.

 Já ouvi dizer, inúmeras vezes, que gosto não se discute. Ultimamente disseram-me essa frase, que bem figuraria entre as proclamações do direito do homem, a propósito da obra de Machado de Assis e da pintura de Picasso. Estou pronto a concordar que gosto não se discute quando se trata de pratos. Custa-me um pouco, mas reconheço a perfeita legitimidade do gosto pela beterraba. No que concerne à pintura de Picasso ou aos livros de Machado, compreende-se ainda uma certa relatividade na simpatia temperamental, um gosto, mas não posso concordar que um juízo sobre tais coisas se reduza a esse elemento da ordem do sensível. Seria a última concessão da inteligência: a submissão aos sentidos.

 Diante de um quadro de Picasso, uma pessoa afetada desse liberalismo subjetivo, convencido da alta dignidade da livre-opinião, não hesita em formular uma condenação peremptória ainda que o difícil problema da arte não tenha tomado dez minutos de reflexão em toda sua vida. Antes da reflexão, do estudo, do esforço de procurar, antes de qualquer coisa está o direito, estranhamente glorificado, da opinião.

A arte moderna é presa fácil da má vontade; quase se pode dizer que é um desafio à objetividade. Tem qualquer coisa de escondido, de velado; não se entrega aos sentidos com a facilidade da arte clássica; tem qualquer coisa de crucificado. Pede humildade, exige uma confiança no absoluto. Aos sentidos é fácil recusar o feio de Rouault e Picasso e logo a má vontade pega nesse julgamento dos sentidos, nesse pseudo-realismo e com ele tece uma intriga dentro da inteligência. E ainda mais, fica a inteligência convencida que está exercendo sua mais nobre atividade porque está funcionando na engrenagem nacionalista com o critério do sensível.

Arrastaria o leitor por fascinantes caminhos se largasse aqui a questão das opiniões para explorar o problema da arte; mas cada coisa tem seu tempo e agora tenho em vista perseguir as conseqüências dessa atitude especial que agride as objetividades.

Na verdade, quem se pronuncia sobre um quadro de Picasso ou sobre um romance de Machado, falando alto numa roda, achando por si mesmo que pode falar, que tem direito, que deve esse legítimo exercício à dignidade de sua cidadania, é um inimigo pessoal do Absoluto. Para tal indivíduo, as coisas não são, valem. Não tem um absoluto, medem-se. Falam alto numa roda, porque não lhes ocorre que exista uma verdade objetiva para cada coisa, mas apenas valores que são conferidos pelos sujeitos.

O Universo inteiro seria uma espécie de bolsa, e cada opinião um preço que se apregoa.

O Universo inteiro, não somente Picasso e Machado, mas os infusórios e as constelações, seriam coisas fetais insuficientemente criadas, à espera da última palavra, do veredicto final a ser pronunciado nas salas de visitas dos pequenos-burgueses.

Devo abrir um parêntese. Um leitor afeito a ironias pensará, com sorriso malicioso, que cada linha deste livro não contém outra coisa senão opiniões; e que para combater as alheias, aqui estou me esforçando por inculcar a minha. Responderei a esse leitor como Léon Bloy a Francis de Miomandre, quando esse amável romancista lhe pediu por carta sua opinião sobre a literatura francesa: “Cher monsieur, j’ai Le chagrin de vous dire que vous n’avez rien compris à l’Exégése dês Lieux Communs, puisque vous supposez que jê peux avoir une opinon sur n’importe quoi. Je n’ai que dês croyances ou dês certitudes absolutes, lesquelles sont toujours à prendire ou à laisser,bien entendu.”[1]

Ao leitor que se demorar naquela malícia, imaginando que apenas quero ter a última palavra sobre determinados assuntos, devo advertir que já deixou de compreender o que até agora escrevi. E cada vez compreenderá menos, nas páginas seguintes, porque foram escritas justamente para contar que me despojei de minhas opiniões.

Mas ao leitor de boa vontade, que desejar sinceramente descobrir como é profundo e antigo esse problema da objetividade, eu devo uma ressalva. No sentido clássico, aristotélico ou platônico, a opinião é uma categoria da inteligência com irrefutáveis direitos de cidades. Nesse sentido, Bloy poderia se pronunciar sobre a literatura francesa ou sobre a arte dos zulos, como também eu, a rigor, não tenho outra coisa a propor sobre Machado ou Picasso. Mas mesmo no sentido clássico a opinião é uma categoria pobre, e por isso dizia Fédon: “Almas decaídas tem a opinião por alimento e não a verdade.”

A coisa a que me refiro nessas linhas é diferente. Não pretendi, e creio que também Bloy não pretendeu, usar um exagero literário para atingir uma retificação, mas procurei fazer uma retificação, não somente de um exagero, mas de uma monstruosa deformação do conceito. No uso corrente do termo, a opinião é um fibroma na inteligência produzido pela recusa diante da objetividade. Porque, de pequeno e modesto dado da inteligência, passa a ser considerada como a mais alta e mais dignificante conquista. Quem se nutre alegremente com esse alimento, achando-o gostoso e suculento, é como quem deixa a carne, o pão e o vinho para apregoar as superiores virtudes do palito. É contra essa estranha dieta que sinto uma justa indignação.

As reflexões contidas neste capítulo evidentemente não foram feitas nos dias em que vivi as experiências contadas anteriormente. São de hoje: vieram-me agora; resultaram da investigação de um nexo para aquelas experiências. Não consigo recordar com exatidão o que pensei naquele tempo, nem posso descrever os estados de consciência que tinham qualquer coisa de um nascimento. Direi apenas que sentia levantar-se em mim um senso de objetividade, uma nova consciência voltada para fora e um princípio de confiança na salvação que só poderia vir de fora. Quando ouvi dizer, sobre romance ou pintura, que tudo era questão de gosto, tive um sobressalto. Pensei que, se cada coisa existisse pelo valor apenas, pela medida desse valor conferida pela opinião, bastaria que uma epidemia matasse umas vinte ou trinta pessoas para que a obra de Machado de Assis deixasse de ser uma grande obra. Ora, essa reflexão tinha dois aspectos terríveis: de um lado uma intolerável solidão e de outro uma insuportável e desproporcionada responsabilidade. De um lado eu estaria só, e ao mesmo tempo, por outro lado, estaria dependendo de mim, da minha opinião, o sentido último e definitivo de todas as coisas do universo. A tarefa imposta me acabrunhava, e o castigo do isolamento me convidava a um desespero total. Passa-me pelo espírito, então, a idéia que eu poderia destruir tudo, destruindo-me.

(CORÇÃO, Gustavo. A descoberta do outro. 1952)


[1] Caro senhor, lamento dizer-vos que não compreendestes nada da "Exegese dos Lugares Comuns", pois supondes que eu possa ter opinião sobre o que quer que seja. Eu só tenho crenças ou certezas absolutas, as quais são sempre de pegar ou largar, bem entendido.