segunda-feira, 11 de julho de 2016

224ª Nota - O judeu moderno e o judeu pré-moderno



O que é o judeu moderno? O que foi o judeu pré-moderno? O judeu pré-moderno acreditava que a Bíblia era literalmente a palavra de Deus, que Ele ditara a Moisés (exceto os últimos oito versículos do Deuteronômio a cujo respeito o próprio Talmud, Baba Batra, indica que possivelmente esses últimos oito versículos não foram ditados por Moisés, visto que dão testemunho de sua morte). Acreditava, ao mesmo tempo, que a tradição real, a lei do Talmud e os comentários da Bíblia também eram a voz de Deus, embora talvez, em grau menor. Mais ainda, este homem de fé profunda e firme vivia em um meio ambiente homogêneo, geralmente ou somente junto a outros judeus. E viviam ao mesmo ritmo, trabalhavam os mesmos dias e tinham os mesmos schabatot e as mesmas festividades, alimentavam-se de igual maneira e regiam-se em seus casamentos pelas mesmas leis. Numa tal sociedade era possível o casamento sem uma relação prévia, o amor romântico não constituía requisito necessário para lograr uma união feliz, pois o mesmo céu e a mesma terra eram comuns ao noivo e a sua noiva. Em terceiro lugar, o judeu pré-moderno dispunha de uma autarquia econômica relativamente cerrada; e os laços entre o gueto e a vida externa eram na realidade bem mais fortes do que se julgou há trinta anos, mas, ainda assim, via de regra, os judeus viviam de e para os judeus. Em quarto lugar, do ponto de vista político, os judeus não participavam em geral da vida política dos países em que moravam, a não ser de forma passiva, e padeciam amiúde os seus efeitos. Seus stadlanim, ou porta-vozes, apresentavam seus casos, porém não existia um partido judeu nem partidos políticos compostos por judeus. A política, de qualquer natureza, estava voltada para o porvir da velha-jovem nação, para a esperança messiânica. E por fim, sob o ângulo cultural, esse judeu pré-moderno, embora conhecesse vários idiomas e apreciasse às vezes a literatura e as artes estrangeiras, tinha como base de sua formação o elemento judeu e hebraico. Tais eram os fatores que determinavam seu caráter intelectual e seu aspecto, posto que o centro de sua vida espiritual era judaico. Pode suportar assim tudo o que suportou.
Se indagarmos, mesmo ao mais tradicionalista entre nós, até que ponto nos parecemos com esse retrato do judeu pré-moderno, creio que a maioria dentre nós admitirá que nos diferenciamos muito em cada um desses cinco pontos. A própria crença de nossos crentes não é fundamentalista, em regra geral. Isto é muito sofisticado. Trata-se de uma luta entre os interrogantes críticos de nosso próprio coração, que há de sobrepor-se ás dúvidas e esforçar-se empós da honestidade intelectual. No que se refere à nossa forma de vida, a maioria dos judeus vive numa espécie de gueto auto-imposto; e é o que nos apraz. O gueto foi uma forma voluntária de estabelecimento, à qual se seguiu a lei canônica que a tornou coercitiva. Ainda hoje nos fixamos em torno da sinagoga e dispomos de bairros judeus, mas as ruas judias já não são homogêneas e o fato mesmo de os judeus modernos viverem juntos salienta ainda mais as diferenças nas formas de vida, com respeito às leis, aos mandamentos e aos costumes. Uma criança judia, por exemplo, vê que muitos judeus não guardam o sábado nem os preceitos dietéticos, assim como seus pais o fazem. Educar-se-á pois num ambiente parcial mas não homogeneamente judeu, o que constitui sem dúvida uma das maiores dificuldades da educação tradicional na atualidade. Economicamente, não podemos nem desejamos viver de nós e para nós, nem mesmo em Israel e muito menos na Diáspora. Mesmo em Israel sentimos cada mudança na estabilidade econômica mundial; existe maior interdependência do que independência. E politicamente já nos decidimos. Todos nós tomamos parte na política, quando não particularmente, como povo, tanto em Israel como fora. O Sionismo é talvez algo mais do que a reconstrução de nosso velho país e a de um novo Estado. O perigo reside na produtiva resolução de retornar à história geral, de reunir-se aos poderes das histórias nacionais. Como todos sabemos, estamos muito distantes do isolamento político sob o qual o judeu pré-moderno e medieval podia esconder-se entre um progrom e outro. Já não contamos esconderijo político, encontramo-nos no campo aberto dos acontecimentos políticos. Vivemos, do ponto de vista cultural, assim como o expressou o Professor Kaplan, em duas civilizações, a judaica e a geral, e na maioria de nós, mesmo em Israel, as forças formativas já não são apenas judaicas. Mesmo quando falamos e estudamos hebraico, as ciências gerais e as humanidades, a história, a poesia e as artes são frequentemente muito mais poderosas que as forças que brotam e fluem do que é nosso.
Este é o retrato do judeu moderno. Mesmo como crente sua crença não é simples. Não habita em um meio homogêneo. Está sujeito a interdependências, quer comerciais, quer políticas, e culturalmente, pode afastar-se, como aconteceu repetidamente, das forças pioneiras de seu ser. Eis a resposta à nossa primeira interrogação.