DA NATUREZA E FINALIDADE DO CANTO
“Coruja, tu me perguntas”, disse o
rouxinol, “se nada mais sei fazer além de cantar no verão, trazendo alegria a
todos. Por que indagas sobre os meus dons? Meu único dom é melhor que todos os
teus; um canto da minha boca é melhor que tudo aquilo que a tua espécie jamais
conheceu. E ouve, vou dizer-te por quê. Sabes para que nasceu o homem? Para a
ventura do reino celestial, onde há sempre canto e também alegria; para lá vai
todo homem que conhece algo de bom. Por isso os homens cantam na santa Igreja e
os clérigos compõem cânticos; para que o homem se lembre, através do canto, do
lugar para onde deverá ir e longamente ficar, para que não esqueça a alegria,
mas pense nela e a alcance, aceitando o ensinamento da Igreja sobre quão
jubilosa é a ventura do céu. Clérigos, monges e cônegos, lá onde há comunidades
religiosas, levantam-se à meia-noite e cantam a luz celeste; e em toda parte a
cantam padres quando se levanta a luz do dia. E eu os ajudo no que posso,
cantando com eles noite e dia; e graças a mim todos eles se alegram mais e se
dispões melhor para o canto. Alerto os homens para o próprio bem, para que
exultem nos seus corações, e peço-lhes que procurem aquele mesmo canto que é
eterno.”
Da réplica da Coruja:
“Mas eu te refuto também por outros
motivos: pois, quando pousas no teu galho, atrais os homens para a luxúria da
carne, sempre que ouvem os teus cantos. Desprezas toda a alegria celeste,
porque dela não tens qualquer noção; sabes apenas cantar a lascívia, pois em ti
não existe nenhuma santidade; e ninguém há de confundir os teus trinados com o
que o padre canta na igreja. Mas vou falar-te sobre outra coisa para ver se és
capaz de explicá-la: por que não cantas para outros povos, que do canto têm
mais necessidade? Jamais cantas na Irlanda, nem vens nunca para a Escócia. Por
que não viajas para a Noruega, nem cantas para os homens de Galloway? Lá vivem
pessoas que pouco sabem do cantar que existe sob o sol. Por que não cantas lá
para os padres, ensinando-lhes os teus trinados e mostrando-lhes, com as tuas
notas, como cantam os anjos do céu? Comportas-te como uma fonte inútil, que
brota junto a um rio impetuoso e deixa seca a encosta, enquanto corre sem
serventia para a planície. Eu, porém, viajo para o norte e para o sul, e sou
conhecido em todas as terras; leste e oeste, longe e perto, cumpro bem o meu
dever, alertando os homens com os meus gritos, para que não os seduza o teu
canto enganoso. Advirto os homens com o meu canto para que deixem o pecado;
peço-lhes que não continuem iludindo a si mesmos, pois é melhor chorar aqui que
ser depois companheiro dos demônios.”
http://excerptos.blogspot.com.br/2012/04/coruja-e-o-rouxinol.html