quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

101ª Nota - Esposa e Mãe exemplar


Educada assim na virtude e na temperança, mais sujeita por ti a seus pais que por seus pais a ti, logo que chegou à idade núbil, foi dada em matrimônio a um homem, a quem serviu como a senhor. Procurou ganhá-lo para ti, falando-lhe de ti com suas virtudes, com as quais a tornavas formosa e reverentemente amável e admirável ante seus olhos. De tal modo tolerou suas infidelidades, que sobre este ponto jamais teve com ele a menor rixa, pois, esperava que tua misericórdia viria sobre ele, e que lhe trouxesse, com a fé, a castidade.
Seu marido, aliás, se por uma parte era sumamente carinhoso, por outra era extremamente colérico; mas ela tomava o cuidado de não se opor ao marido irado nem com ações, nem mesmo com palavras. Logo que o via tranquilo e sossegado, e o julgava oportuno, dava-lhe razão do que havia feito, se por acaso se tivesse irritado desmedidamente.
Muitas senhoras, que tinham maridos mais calmos, traziam no rosto as marcas de golpes que as desfiguravam. Conversando entre amigas punham-se a murmurar sobre a conduta dos maridos. Minha mãe acusava-lhes a língua, e, como por gracejo, lembrava-lhes que, desde que ouviram a leitura do contrato matrimonial, deviam considerá-lo como documento que as tornava servas, e que a lembrança de sua condição, proibia-lhes de se mostrarem altivas diante de seus senhores. Essas senhoras, que conheciam a ferocidade de seu marido, admiravam-se de que jamais ninguém tivesse ouvido ou percebido por nenhum indício que Patrício maltratasse a mulher, nem sequer que algum dia se tivessem desentendido em alguma discussão. E como lhe pedissem familiarmente, a razão disso, minha mãe ensinava-lhes como agia habitualmente, que é como disse acima. As que a imitavam, fazendo a experiência davam-lhe graças; as que não a seguiam, escravizadas, continuavam a sofrer humilhações e sevícias.
Sua sogra, a princípio irritara-se contra ela por causa dos mexericos de criadas malévolas. Mas conseguiu vencê-la de tal modo com favores, contínua tolerância e mansidão, que ela mesma, espontaneamente, denunciou ao filho as línguas intrigantes das criadas, que perturbavam a paz doméstica entre ela e a nora, e pediu que as castigasse. Ele, para agradar a mãe e conservar a disciplina familiar e a harmonia entre os seus, mandou açoitar as acusadas, segundo a vontade da acusante, e esta lhes declarou que esse era o prêmio que devia esperar dela quem, pretendendo agradá-la, lhe dissesse algum mal da nora. E como ninguém mais se atrevesse a fazê-lo, viveram as duas em doce e memorável harmonia.
A esta tua boa serva, em cujas entranhas me criaste, ó meu Deus, minha misericórdia, dotaste de outra grande virtude: a de intervir como pacificadora, sempre que podia, nas discórdias e querelas. Em vão ouvia ele uma e outra parte essas queixas amargas, vomitadas por uma animosidade cheia de ressentimentos, quando na presença de uma amiga os ódios mal digeridos se desafogam em amargas confidências a respeito de uma amiga ausente, pois, ela nada referia de uma à outra, senão o que poderia servir para uma reconciliação.
Pequeno bem me pareceria este, se uma triste experiência não me houvesse dado a conhecer uma multidão de pessoas – por não sei que horrível contágio de pecados, espalhados por toda parte – que não só revelam as palavras pesadas de inimigos irados, mas que ainda acrescentam coisas que não foram ditas. Um homem verdadeiramente humano deveria considerar pouco o não excitar nem aumentar as inimizades dos homens, se não procura antes extingui-las falando bem.
Tal era minha mãe, ensinada por ti, mestre interior, na escola de seu coração. Por último, conseguiu também conquistar para ti a seu marido no fim da vida, não tendo que lamentar no cristão o que havia tolerado no infiel.
Ela era também a serva de teus servos, e todos os que a conheciam te louvavam, honravam, amavam muito em sua pessoa, porque percebiam tua presença em seu coração, comprovada pelos frutos de uma vida santa.
Havia sido mulher de um só homem, saldara para os pais sua dívida de gratidão, governara sua casa piedosamente e tinha o testemunho de suas boas obras. Educara os filhos, dando-os à luz tantas vezes quantas os via apartarem-se de ti.
Quanto a nós, Senhor, que nos chamamos teus servos por tua permissão, nós, que vivemos em comum na graça de teu batismo, antes de adormecer em tua paz, ela cuidou de nós como se todos fossemos seus filhos, e de tal modo nos serviu como se fosse filha de cada um de nós.
(Santo Agostinho, As Confissões)
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