segunda-feira, 5 de setembro de 2016

247ª Nota - Gilberto Freyre e o Catolicismo no Brasil


Os jesuítas foram outros que pela influência do seu sistema uniforme de educação e de moral sobre um organismo ainda tão mole, plástico, quase sem ossos, como o da nossa sociedade colonial nos séculos XVI e XVII, contribuíram para articular como educadores o que eles próprios dispersavam como catequistas e missionários. Estavam os padres da S.J. em toda parte; moviam-se de um extremo ao outro do vasto território colonial; estabeleciam permanente contato entre os focos esporádicos de colonização, através da “língua-geral”, entre os vários grupos de aborígines. Sua mobilidade, como a dos paulistas, se por um lado chegou a ser perigosamente dispersiva, por outro lado foi salutar e construtora, tendendo para aquele “unionismo” em que o Professor João Ribeiro surpreendeu uma das grandes forças sociais da nossa História.

Para o “unionismo” prepara-nos, aliás, a singular e especialíssima situação do povo colonizador; o qual chega às praias americanas unido política e juridicamente; e por maior que fosse a sua variedade íntima ou aparente de etnias e de crenças, todas elas acomodadas à organização política e jurídica do Estado unido à Igreja Católica. Como observa M. Bonfim, “a formação de Portugal se caracteriza por uma precocidade política tal, que o pequeno reino nos aparece como a primeira nação completa na Europa do século XVI”. Observação que já fizera Stephens na sua “The Story of Portugal”.

Os portugueses não trazem para o Brasil nem separatismos políticos, como os espanhóis para o seu domínio americano, nem divergências religiosas, como os ingleses e franceses para as suas colonias. Os Marranos em Portugal não constituíam o mesmo elemento intransigente de diferenciação que os Huguenotes na França ou os Puritanos na Inglaterra; eram uma minoria imperecível em alguns dos seus caraterísticos, economicamente odiosa, porém não agressiva nem perturbadora da unidade nacional. Ao contrário: a muitos respeitos, nenhuma minoria mais acomodatícia e suave.

O Brasil formou-se, despreocupados os seus colonizadores da unidade ou pureza da raça. Durante quase todo o século XVI a colônia esteve escancarada a estrangeiros, só importando às autoridades coloniais que fossem de fé ou religião Católica. Handelmann notou que para ser admitido como colono do Brasil no século XVI a principal exigência era professar a religião cristã: “somente cristãos” – e em Portugal isso queria dizer Católicos – “podiam adquirir sesmarias”. “Ainda não se opunha todavia”, continua o historiador alemão, “restrição alguma no que diz respeito à nacionalidade: assim é que Católicos estrangeiros podiam emigrar para o Brasil e aí estabelecer-se [...]”. Oliveira Lima salienta que no século XVI Portugal tolerava em suas possessões muitos estrangeiros, não sendo a política portuguesa de colonização e povoamento a de “rigoroso exclusivismo posteriormente adotado pela Espanha”.

Através de certas épocas coloniais observou-se a prática de ir um frade a bordo de todo navio que chegasse a porto brasileiro, a fim de examinar a consciência, a fé, a religião do adventício. O que barrava então o imigrante era a heterodoxia; a mancha de herege na alma e não a mongólica no corpo. Do que se fazia questão era da saúde religiosa: a sífilis, a bouba, a bexiga, a lepra entraram livremente trazidas por europeus e negros de várias procedências.

O perigo não estava no estrangeiro nem no indivíduo disgênico ou cacogênico, mas no herege. Soubesse rezar o padre-nosso e a ave-maria, dizer Creio-em-Deus-Padre, fazer o pelo-sinal-da-Santa-Cruz – e o estranho era bem-vindo no Brasil colonial. O frade ia a bordo indagar da ortodoxia do indivíduo como hoje se indaga da sua saúde e da sua raça. “Ao passo que o anglo-saxão”, nota Pedro de Azevedo, “só considera de sua raça o indivíduo que tem o mesmo tipo físico, o português esquece raça e considera seu igual aquele que tem religião igual à que professa”.

Temia-se no adventício acatólico o inimigo político capaz de quebrar ou de enfraquecer aquela solidariedade que em Portugal se desenvolvera junto com a religião Católica. Essa solidariedade manteve-se entre nós esplendidamente através de toda a nossa formação colonial, reunindo-nos contra os calvinistas franceses, contra os reformadores holandeses, contra os protestantes ingleses. Daí ser tão difícil, na verdade, separar o brasileiro do Católico: o Catolicismo foi realmente o cimento de nossa unidade. 

(Gilberto Freyre, em “CASA-GRANDE & SENZALA – Formação da Família Brasileira – Sob o Regime de Economia Patriarcal – 1958)