A RADIOMENSAGEM de Sua Santidade o Papa
Pio XII na véspera do Natal de 1952 nos põe diante do terrível problema
suscitado pelas crescentes devastações que o totalitarismo vem causando em todo
o mundo: a despersonalização do homem moderno.
Para que nos possamos capacitar da
profundidade que já atingiram as raízes desse mal, não precisamos fazer
incursões nos arraiais do inimigo. Basta que vejamos como as próprias hostes
católicas se acham contaminadas por esse flagelo. Ainda recentemente, em
circunstâncias dramáticas, dizia Pio XII ser preciso "impedir a pessoa e a
família de deixarem arrastar para o abismo onde tende a lançá-las a
socialização de todas as coisas, ao fim da qual a terrível imagem do Leviatã
tornar-se-á uma horrível realidade" (Alocução ao "Katholikentag"
de Viena). É o socialismo, portanto, atualmente a maior ameaça que pesa sobre a
sociedade humana.
UMA DISTINCÃO ESPECIOSA
Ora, tentam certos católicos construir uma
ponte entre a Igreja e Revolução, inventando uma distinção que não se acha nos
documentos pontifícios nem encontra amparo na mais elementar observação dos
fatos, quanto ao que constitui a essência do que o socialismo tem de errôneo e
pernicioso. Dizem eles que "a incompatibilidade da doutrina da Igreja com
o socialismo, é apenas no terreno da filosofia da vida. É do socialismo
materialista que a Igreja se separa radicalmente. O que ela combate não é a
socialização dos meios de produção”, (Alceu de Amoroso Lima em "O Problema
do Trabalho", pag. 152). "Desde que o socialismo não seja
compulsoriamente ateu e totalitário, isto é, exclua os valores supremos da vida
que a Igreja representa, Deus e a liberdade humana, é um sistema econômico como
outro qualquer, cujas vantagens ou cujos defeitos só a prática poderá
demonstrar" (obra cit., pag. 153). “... será muito mais fácil realizar a
doutrina social da Igreja numa sociedade socialista equilibrada, que numa
sociedade capitalista" (pag. 154). "Há um abismo entre o socialismo e
o comunismo. Este não é o socialismo científico. É o socialismo místico. É um
regime integral, econômico e filosófico. É o socialismo como concepção de vida.
É o materialismo dialético e sociológico" (pag. 204). Constituiria, portanto,
um progresso social a passagem de uma ordem de coisas capitalista para a nova
era socialista: "A transição natural do capitalismo ao socialismo é o
espetáculo a que estamos assistindo, Já vimos mesmo que um das grandes
novidades do nosso tempo é a crise do socialismo e a sua dissociação entre
socialismo-metafísico, que se baseia numa filosofia materialista e é o atual
comunismo marxista e soviético, — e o socialismo-econômico, que se concretiza
nos diferentes Partidos Socialistas não comunistas dos nossos dias, e se abstém
cada vez mais de impor uma filosofia da vida a seus aderentes, permanecendo
exclusivamente no plano econômico e deixando os problemas filosóficos e
religiosos para o foro íntimo de cada um" (pag. 212).
O SOCIALISMO E A VERDADE CRISTÃ
Em primeiro lugar cabe perguntar: uma
"sociedade socialista equilibrada", dominada por um Partido
Socialista cuja ação se desenvolve exclusivamente no plano econômico, não
estará sendo dirigida por um preconceito materialista? Não é outra a razão por
que, na "Quadragésimo Anno", o Santo Padre Pio XI condena toda e
qualquer espécie de socialismo, por atenuado que seja. Com efeito, ao mencionar
as transformações por que passou o socialismo desde o tempo de Leão XIII, cita
em primeiro lugar o comunismo como o "ramo mais violento". Em seguida
passa a tratar do "ramo mais moderado, que conserva o nome de
socialismo", e mostra como "mesmo depois de suas concessões à verdade
e à justiça, a que fizemos menção", é "incompatível com os dogmas da
Igreja Católica, já que sua maneira de conceber a sociedade se opõe
diametralmente à verdade cristã".
E porque concebe o socialismo a sociedade
e o caráter social do homem de forma diametralmente contrária à verdade cristã?
É que, segundo a doutrina católica, "o homem dotado de natureza social,
foi posto na terra para que, vivendo em sociedade e sob uma autoridade social
ordenada por Deus, cultive e desenvolva todas as suas faculdades para gloria e
louvor de seu Criador; e cumprindo fielmente os deveres de sua profissão ou de
sua vocação, seja qual for, logre a felicidade temporal e juntamente a
eterna". E o socialismo, em que vai contra esta finalidade do homem e da
sociedade? Será por impor uma filosofia de vida, uma concepção de vida, ou por
ser ateu? Não, isto são agravantes do ramo mais violento. O socialismo atenuado
é incompatível com a doutrina católica justamente por permanecer exclusivamente
no plano econômico e por não tomar conhecimento dos problemas filosóficos e
religiosos. Com efeito, diz Pio XI, "o socialismo, pelo contrário,
completamente ignorante e descuidado de tão sublime fim do mundo e da
sociedade, pretende que a sociedade humana não tem outro fim que o puro
bem-estar".
É enquanto puro sistema econômico que o
Papa continua a criticar esse socialismo atenuado: "a divisão ordenada do
trabalho é muito mais eficaz para a produção dos bens que os esforços isolados
dos particulares; daí deduzem os socialistas a necessidade de que a atividade
econômica (na qual só consideram o fim material) proceda socialmente" (doc.
cit.). Mais ainda: "Pensam que a abundância de bens que há de receber cada
um nesse sistema para empregá-lo a seu prazer nas comodidades e necessidades da
vida, facilmente compensa a diminuição da dignidade humana, à qual se chega no
processo "socializado" da produção". Como se vê, segundo Pio XI
é o próprio ordenamento ou processo socializado da produção que atenta contra a
liberdade do homem e contra a sua dignidade. Mesmo porque, continua o Papa,
"uma sociedade como a vê o socialismo não pode existir nem conceber-se sem
grande violência, por um lado, e por outro, entroniza uma falsa licença, visto
que nela não existe verdadeira autoridade social: esta, com efeito, não pode
basear-se nas vantagens materiais e temporais, mas só pôde vir de Deus Criador
e fim último de todas as coisas". Não pode, portanto, a humanidade ser
governada por forças políticas que permanecem "exclusivamente no plano
econômico", "deixando os problemas filosóficos e religiosos para o
foro íntimo de cada um". Equivale isto a amarrar os braços e as pernas de
um homem, deixando a cabeça livre, e jogá-lo n’água para nadar.
ONDE ENTRA O DEMÔNIO DA ORGANIZAÇÃO
Essa superstição socialista da organização
e do "social" levada ao campo do trabalho, da produção, da
previdência social, do ensino, esse tragar de toda a atividade social pelo
Estado, tendo por base a preocupação exclusiva do "puro bem-estar",
essa estúpida diferenciação geométrica da esfera própria do poder temporal é
que se acham no âmago do problema da despersonalização do homem moderno,
segundo as impressionantes palavras de Pio XII em sua recente radio mensagem do
Natal:
"O matrimônio e a família, o Estado,
a propriedade privada tendem por sua natureza a formar e desenvolver o homem
como pessoa, a protegê-lo e a fazê-lo capaz de contribuir, com sua voluntaria
colaboração e responsabilidade pessoal, à manutenção e desenvolvimento, também
pessoal, da vida social. A sabedoria criadora de Deus permanece pois, alheia a
esse sistema de unidade impessoal, que atenta contra a pessoa humana, fonte e
meta da vida social, imagem de Deus em seu mais íntimo ser.
"Desgraçadamente não se trata agora
de hipóteses e previsões, pois já é um fato esta triste realidade: onde o
demônio da organização invade e tiraniza o espírito humano, em seguida se
revelam os sinais da falsa e anormal orientação do progresso social. Em não
poucas nações o Estado moderno se vai convertendo em uma gigantesca máquina
administrativa, que estende sua mão sobre quase toda a vida: a escala completa
dos setores político, econômico, social, intelectual, até o nascimento e a
morte, quer que seja matéria de sua administração. Não é, pois, para
surpreender que neste clima do impessoal, que tende a penetrar e envolver toda
a vida, o sentimento do bem comum se embote nas consciências dos indivíduos, e
que o Estado perca dada vez mais o caráter primordial de uma comunidade moral
de cidadãos".
A vida social não pode ser construída à
maneira de uma gigantesca máquina industrial como fria organização de forças,
como querem os espíritos totalitários.
Repete aqui Pio XII a condenação de Pio XI
da "... superstição segundo a qual se daria por certo que a salvação deve
brotar da organização dos homens e das coisas em uma estreita unidade, capaz do
mais alto poder produtivo". É o "demônio da organização" que
cega certos espíritos e os tolhe de ver a malícia intrínseca do socialismo,
esse derrogar das leis que Deus colocou na base da vida social dos povos. E
enquanto lavra o incêndio totalitário por toda a parte, os faz lançar gasolina
sobre os escombros do que ainda resta da livre iniciativa dos grupos locais.
(J. de Azeredo Santos, extraído da revista Catolicismo, 1952)