quarta-feira, 27 de junho de 2018

367ª Nota - Abafar a verdade e o erro é favorecer a heresia




De uma carta a Nicolas Pavillon e Etienne Caulet, que se dispunham a tomar uma posição de neutralidade na luta entre os  jansenistas, cujos erros ainda não estavam condenados, e ortodoxos:

"VEJO (na carta recebida) muitos pensamentos dignos da posição que ocupais... e que parecem inclinar-vos a seguir o partido do silêncio nas presentes dissensões. Não deixarei, porém, de expor-vos algumas razões que talvez vos induzam a mudar de parecer, suplicando-vos, prostrado em espírito a vossos pés, que não o leveis a mal.

E em primeiro lugar, a respeito do temor que manifestais, de que a decisão que se deseja da parte de Sua Santidade não seja recebida com a submissão e a obediência que todos cristãos devem à voz de seu supremo Pastor, e de que o Espírito de Deus não encontre bastante docilidade nos corações para operar neles uma verdadeira união, - de bom grado vos farei presente que, se quando começaram, por exemplo, a aparecer as heresias de Lutero e Calvino se houvesse sobrestado sua condenação até que seus sequazes se mostrassem dispostos a submeter-se e a unir-se aos demais, ainda permaneceriam aquelas heresias no rol das coisas indiferentes, que se pode seguir ou repelir, e teriam infectado a um número muito maior de pessoas. Pois se estas opiniões, cujos perniciosos efeitos nas consciências estamos vendo, são dessa natureza, em vão esperaremos que os que as semeiam se ponham de acordo com os defensores da doutrina da Igreja: isso não se pode esperar nem acontecerá jamais, e diferir a obtenção de sua condenação pela Santa Sé é dar-lhes tempo de espalhar seu veneno...

A propósito do segundo ponto que abordais — a saber, que o calor com que ambos os partidos sustentam sua própria opinião deixa pouca esperança de um perfeito acordo, ao qual, não obstante, seria necessário chegar - sinto-me obrigado a fazer-vos notar que não há jeito de obter a união na diversidade e até contrariedade de pareceres em matéria de fé e de Religião, a não ser recorrendo a um terceiro, que não Pode ser outro que o Papa, na falta de um Concílio. E quem não quer tratar de pôr-se de acordo desta maneira, não é capaz de nenhuma conciliação, a qual, se não for assim, nem sequer é de se desejar, pois as leis nunca se hão de reconciliar com os crimes, nem a mentira se pode pôr de acordo com a verdade.

Em terceiro lugar, essa uniformidade que quereis entre os Prelados seria muito de se desejar, contanto, porém, que se faça sem detrimento da fé, pois não se há de desejar a união no mal nem no erro. E no caso de fazer-se a união, cabe à parte menor volver até a maior, e aos membros reunir-se à sua cabeça, que é o que se propõe...

E daqui se deduz a quarta razão que serve de resposta ao que vos dignastes dizer-me: que ambos os partidos crêem estar com a razão e a verdade. Reconheço que de fato assim é, mas também sabeis que todos os hereges têm dito outro tanto, e isso não os tem livrado da condenação e dos anátemas contra eles fulminados pelos Papas e Concílios. Nunca se entendeu que o acordo com eles fosse um meio de curar o mal, mas, pelo contrário, aplicou-se o ferro e o fogo, — por vezes demasiado tarde, como poderia acontecer aqui. É verdade que um partido acusa o outro, porém com esta diferença: um pede juízes, e o outro não os quer, o que é mau sinal. Não quer o remédio digo eu, da parte do Papa, porque sabe que é possível obtê-lo, e aparenta pedir o do Concilio, porque o crê impossível no presente estado de coisas (a guerra); e se o julgasse possível, repeli-lo-ia também, do mesmo modo que repele o outro. E não seria, em meu entender, motivo de mofa para os libertinos e hereges, nem tampouco de escândalo para os bons, ver que os Bispos estão divididos. Pois... não é coisa extraordinária nos antigos Concílios que nem todos tenham sido do mesmo parecer.

...Quanto ao remédio que propondes, de proibir absolutamente a um e outro partido de dogmatizar, suplico-vos humildemente que considereis que já se tem tentado isso inutilmente, com o único resultado de dar mais consistência ao erro, já que este, ao ser tratado em pé de igualdade com a verdade, tem tido tempo de propagar-se, e está sendo demasiada a tardança em erradicá-lo, de vez que, consistindo esta doutrina não só na teoria, mas principalmente na prática, as consciências já não podem suportar a perturbação e a inquietação que nascem da dúvida que está penetrando nos corações de todos...

Permiti-me também, ..., acrescentar a estas considerações que os que professam estas novidades, ao ver que se temem suas ameaças, aumentam-nas e se preparam para uma rebelião declarada, servindo-se de vosso silêncio como de poderoso argumento a seu favor,... e, pelo contrário, os que se mantêm na simplicidade da antiga crença se acovardam e desanimam vendo que não são enojados por todos. E não tereis um dia o pesar de que vossos nomes houvessem servido - embora contra a vossa intenção, que sem dúvida é santa - para confirmar a uns em sua rebeldia e fazer vacilar aos outras em sua crença?

...Mais uma vez repito, ..., que não há razão para temer que não se obedeça ao Papa, como é de obrigação, quando ele tiver manifestado seu ditame. Pois, além do fato de que essa razão do temor de uma desobediência teria lugar em todas as heresias, e por isso mesmo seria mister tê-las deixado reinar impunemente, temos um exemplo muito recente (na doutrina das duas cabeças da Igreja, a cuja condenação pelo Papa, todos se submeteram)...

("San Vicente de Paul — Biografia y seleccion de escritos", por José Herrera, C. M. e Veremundo Pardo, C. M. — Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1950, pag. 846)