De uma carta a Nicolas Pavillon e Etienne Caulet,
que se dispunham a tomar uma posição de neutralidade na luta entre os
jansenistas, cujos erros ainda não estavam condenados, e ortodoxos:
"VEJO (na carta recebida) muitos pensamentos
dignos da posição que ocupais... e que parecem inclinar-vos a seguir o partido
do silêncio nas presentes dissensões. Não deixarei, porém, de expor-vos algumas
razões que talvez vos induzam a mudar de parecer, suplicando-vos, prostrado em
espírito a vossos pés, que não o leveis a mal.
E em primeiro lugar, a respeito do temor que
manifestais, de que a decisão que se deseja da parte de Sua Santidade não seja
recebida com a submissão e a obediência que todos cristãos devem à voz de seu
supremo Pastor, e de que o Espírito de Deus não encontre bastante docilidade
nos corações para operar neles uma verdadeira união, - de bom grado vos farei
presente que, se quando começaram, por exemplo, a aparecer as heresias de
Lutero e Calvino se houvesse sobrestado sua condenação até que seus sequazes se
mostrassem dispostos a submeter-se e a unir-se aos demais, ainda permaneceriam
aquelas heresias no rol das coisas indiferentes, que se pode seguir ou repelir,
e teriam infectado a um número muito maior de pessoas. Pois se estas opiniões,
cujos perniciosos efeitos nas consciências estamos vendo, são dessa natureza,
em vão esperaremos que os que as semeiam se ponham de acordo com os defensores
da doutrina da Igreja: isso não se pode esperar nem acontecerá jamais, e
diferir a obtenção de sua condenação pela Santa Sé é dar-lhes tempo de espalhar
seu veneno...
A propósito do segundo ponto que abordais — a
saber, que o calor com que ambos os partidos sustentam sua própria opinião
deixa pouca esperança de um perfeito acordo, ao qual, não obstante, seria
necessário chegar - sinto-me obrigado a fazer-vos notar que não há jeito de
obter a união na diversidade e até contrariedade de pareceres em matéria de fé
e de Religião, a não ser recorrendo a um terceiro, que não Pode ser outro que o
Papa, na falta de um Concílio. E quem não quer tratar de pôr-se de acordo
desta maneira, não é capaz de nenhuma conciliação, a qual, se não for assim,
nem sequer é de se desejar, pois as leis nunca se hão de reconciliar com os
crimes, nem a mentira se pode pôr de acordo com a verdade.
Em terceiro lugar, essa uniformidade que quereis
entre os Prelados seria muito de se desejar, contanto, porém, que se faça sem
detrimento da fé, pois não se há de desejar a união no mal nem no erro. E no
caso de fazer-se a união, cabe à parte menor volver até a maior, e aos membros
reunir-se à sua cabeça, que é o que se propõe...
E daqui se deduz a quarta razão que serve de
resposta ao que vos dignastes dizer-me: que ambos os partidos crêem estar com a
razão e a verdade. Reconheço que de fato assim é, mas também sabeis que todos
os hereges têm dito outro tanto, e isso não os tem livrado da condenação e dos
anátemas contra eles fulminados pelos Papas e Concílios. Nunca se entendeu
que o acordo com eles fosse um meio de curar o mal, mas, pelo contrário,
aplicou-se o ferro e o fogo, — por vezes demasiado tarde, como poderia
acontecer aqui. É verdade que um partido acusa o outro, porém com esta
diferença: um pede juízes, e o outro não os quer, o que é mau sinal. Não quer o
remédio digo eu, da parte do Papa, porque sabe que é possível obtê-lo, e
aparenta pedir o do Concilio, porque o crê impossível no presente estado de
coisas (a guerra); e se o julgasse possível, repeli-lo-ia também, do mesmo modo
que repele o outro. E não seria, em meu entender, motivo de mofa para os
libertinos e hereges, nem tampouco de escândalo para os bons, ver que os Bispos
estão divididos. Pois... não é coisa extraordinária nos antigos Concílios que
nem todos tenham sido do mesmo parecer.
...Quanto ao remédio que propondes, de proibir
absolutamente a um e outro partido de dogmatizar, suplico-vos humildemente que
considereis que já se tem tentado isso inutilmente, com o único resultado de
dar mais consistência ao erro, já que este, ao ser tratado em pé de
igualdade com a verdade, tem tido tempo de propagar-se, e está sendo
demasiada a tardança em erradicá-lo, de vez que, consistindo esta doutrina não
só na teoria, mas principalmente na prática, as consciências já não podem
suportar a perturbação e a inquietação que nascem da dúvida que está penetrando
nos corações de todos...
Permiti-me também, ..., acrescentar a estas
considerações que os que professam estas novidades, ao ver que se temem suas
ameaças, aumentam-nas e se preparam para uma rebelião declarada, servindo-se de
vosso silêncio como de poderoso argumento a seu favor,... e, pelo contrário, os
que se mantêm na simplicidade da antiga crença se acovardam e desanimam vendo
que não são enojados por todos. E não tereis um dia o pesar de que vossos nomes
houvessem servido - embora contra a vossa intenção, que sem dúvida é santa -
para confirmar a uns em sua rebeldia e fazer vacilar aos outras em sua crença?
...Mais uma vez repito, ..., que não há razão para
temer que não se obedeça ao Papa, como é de obrigação, quando ele tiver
manifestado seu ditame. Pois, além do fato de que essa razão do temor de uma
desobediência teria lugar em todas as heresias, e por isso mesmo seria mister
tê-las deixado reinar impunemente, temos um exemplo muito recente (na
doutrina das duas cabeças da Igreja, a cuja condenação pelo Papa, todos se
submeteram)...
("San Vicente de Paul — Biografia y seleccion
de escritos", por José Herrera, C. M. e Veremundo Pardo, C. M. —
Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1950, pag. 846)