sábado, 6 de outubro de 2018

390ª Nota - Que precisamos saber sobre os projetos de diretrizes e bases da educação




ONDE LIBERAIS E TOTALITÁRIOS SE ENCONTRAM

Grande celeuma vem sendo levantada em torno de um projeto de Diretrizes e Bases da Educação em trânsito pelo Congresso Nacional. Sem querer entrar na apreciação das inegáveis qualidades e dos possíveis defeitos desse documento, achamos oportuno tecer alguns comentários em torno das reações que os seus dispositivos vêm despertando em certos ambientes.
Podemos distinguir dois grupos principais de adversários desse projeto. Um, ululante, demagógico, traindo com toda a clareza a mão oculta que açula seus dirigentes, não apresenta argumentos: prefere ir para a praça pública fazer arruaças. Outro, mais comedido, procura raciocinar e fundamentar sua posição. Ambos esses grupos, entretanto, têm algo em comum. Por processos diferentes tentam mostrar que é preciso salvar a escola pública, pobrezinha, que tal projeto de diretrizes e bases se proporia estraçalhar em favor da escola particular. A frequente referência à escola “confessional” parece, ao mesmo tempo, indicar que o que se visa de modo particular é a escola católica.

A CRIANÇA ENJEITADA

Vejamos alguns exemplos típicos dos argumentos invocados. Uma notabilidade tapuia em assuntos educacionais declarou, em resumo, que ao Estado incumbe ministrar o ensino em todos os graus. Aos particulares cabe apenas um papel supletivo. Onde a ação estatal for omissa, aí a iniciativa privada pode coadjuvar o governo. Se tomarmos ao pé da letra tal declaração, e se dela tirarmos todas as conclusões lógicas, veremos que conduz ao monopólio do ensino pelo Estado. Em suelto de órgão conhecido por suas contraditórias tendências liberais, encontramos outra restrição ao citado projeto: “Urge oferecer igualdade de oportunidade a todos, independentemente de credos, raças, religiões ou condições econômico-financeiras. Daí a necessidade do ensino primário obrigatório e gratuito, que o projeto não considera”. Mais ainda: “O fato de o projeto não considerar a obrigatoriedade e a gratuidade escolares, que são, aliás, princípios impostos pela própria Constituição, por si só demonstra que as preocupações que prevaleceram não foram, sem dúvida, as que melhor resguardam os interesses de uma autentica educação democrática. A escola pública não se compadece com nenhuma espécie de discriminação e, por este motivo, somente ela, sem pretensões monopolizadoras, pode transformar o direito à educação numa realidade efetivamente vivida”. O ensino particular é uma espécie de criança enjeitada que não tem os mesmos direitos dos filhos legítimos. Recusa-se-lhe adequada representação nos Conselhos governamentais de Educação. Mesmo porque, segundo outro modo de argumentar, basta que os estabelecimentos particulares sejam reconhecidos legalmente. É o máximo de tolerância “democrática” que se lhes pode conceder.
Parece-nos suficiente esta pequena amostra para indicar as enormes devastações que a mentalidade totalitária e laicista continua a causar em nosso meio, e como é grande a confusão de ideias reinantes sobre o assunto.
Seja-nos licito, portanto, tecer alguns comentários a respeito do problema da educação, cingindo-nos apenas a certos aspectos fundamentais que o tema oferece.

A CONCEPÇÃO TOTALITÁRIA DA EDUCAÇÃO

Em primeiro lugar, consideremos a sociedade temporal em face do Estado. Segundo a concepção totalitária, a educação em todos os graus compete a este último. Antes mesmo de Hitler e de Nikita Kruchev, já Danton dizia que “as crianças pertencem à República antes de pertencer a seus pais”. O mesmo revolucionário também afirmava: “Quem me garantirá que os jovens, trabalhados pelo egoísmo dos pais, não se tornarão perigosos para a República? É nas escolas nacionais que a criança deve sugar o leite republicano”. E quanto ao ideal totalitário de perfeição, que é o monopólio educacional do Estado, assim se expressava Robespierre: “Só a pátria tem o direito de educar os jovens; ela não pode confiar esse depósito ao orgulho das famílias nem aos preconceitos dos particulares” (ver todo um conjunto de citações semelhantes na obra de Taine: “Origines de la France contemporaine”).
Em outras palavras, considerado em seu inteiro desenvolvimento, o sistema totalitário pode ser assim resumido: monopólio da educação pelo Estado, ensino gratuito, obrigatório e leigo. Este é o programa completo urdido pela Revolução Francesa, parcial e contraditoriamente posto em execução pelo sectarismo liberal, e agora já em plena aplicação nas chamadas “democracias populares”. Em regimes semitotalitários ou semiliberais, como os vigentes em boa parte do Ocidente, a liberdade vem sendo gradualmente destruída em todos os setores da vida social, através de um processo farisaico, que no campo educacional visa ao extermínio da escola católica e do ensino particular. Emprega-se de preferência o método da exaustão, pela concorrência desleal da escola pública, mantida integralmente pelo Estado, e pelas dificuldades administrativas criadas para a iniciativa privada.
Ao mesmo tempo, a Revolução lança em circulação vários “slogans” por meio dos quais vai realizando seu programa, com a vantagem adicional de com eles embair a opinião pública. Assim, há cerca de dois séculos enche os ares com os gritos de igualdade, e brada simultaneamente pela liberdade, fingindo desconhecer que a autêntica liberdade dos filhos de Deus se mostra incompatível com o igualitarismo, vale dizer, onde impera a verdadeira liberdade, que deve existir somente para a prática da virtude e do bem, o comportamento humano em face dessa liberdade é desigual, como desiguais são os dons naturais, as inteligências e as vontades.

INJUSTIÇA DO ENSINO GRATUITO E IGUALITÁRIO

A lei natural exige esse exercício da autêntica liberdade, para que o homem possa, com mérito, desenvolver plenamente sua personalidade. Animal social, nasce ele e se educa no seio da família e se desenvolve nos grupos profissionais, artísticos, regionais, que se escalonam na pirâmide social. Tanto mais livre será um povo, quanto mais vida própria tiverem os variados grupos sociais que o compõem.
Ora, o ideal para um povo verdadeiramente livre não será que o Estado, erigido em Providência de todos os cidadãos, dê a cada um o pão que deverá comer, mas sim que todos consigam seu sustento pelos meios próprios de que dispõem. Do mesmo modo, passando daí para o pão do espírito, para o alimento que mantém a vida intelectual em seus variados aspectos, não será desejável que o Estado ministre a todos os homens o mesmo saber gratuito e estereotipado, senão que a educação e a instrução lhes sejam oferecidas dentro do próprio grupo social a que pertencem, bem como sejam diversificadas conforme a riqueza, a pujança do espírito de variedade que é característica de um povo realmente livre e culto.
Mesmo porque a gratuidade do ensino oferecido pelo Estado constitui uma verdadeira burla e fere a justiça distributiva. Tal ensino não é gratuito, pois é notório que os recursos para os seus empreendimentos o Estado os arrecada da própria coletividade, e em proporções que costumam constituir verdadeiro confisco, dada a tendência cada vez mais comum de a taxação exceder a capacidade econômica dos contribuintes. E estes não recebem os favores do Estado, em matéria de educação, em função do que coercitivamente entregam ao fisco, mas de acordo com a média aritmética inventada por aqueles que estão apostados em fazer o nivelamento social a todo custo. Se a intenção é impor a “democratização do ensino” através da escola gratuita, poder-se-ia pelo mesmo argumento socialista forçar a “democratização” de outros aspectos da vida social mediante a gratuidade da habitação, do vestuário, da alimentação, do transporte, etc. Mas, a esta altura, por onde andaria a liberdade dos filhos de Deus?
A função primordial do Estado vem a ser a promoção do bem comum, sem procurar, porém, usurpar o lugar e as atribuições dos vários grupos que compõem a sociedade humana. No caso particular que nos interessa, o Estado tem como uma de suas principais incumbências a de incentivar as atividades educacionais de todo o corpo social, só chamando a si diretamente a tarefa da educação, em caráter supletivo e subsidiário, onde a iniciativa privada for temporariamente incapaz de cumprir eficazmente essa missão que lhe é própria. A chamada escola pública deve normalmente estar entregue às mãos da própria sociedade, através dos vários grupos intermediários existentes entre os indivíduos e o Estado.
Este é o ideal de uma sociedade verdadeiramente livre, orgânica e não-totalitária do ponto de vista educacional, ao contrário do que afirmou na imprensa diária o liberal da velha guarda a que atrás aludimos. Demonstrou este último, assim, a verdade, que sempre sustentamos, de que o liberal faz totalitarismo como M. Jourdain fazia prosa.

A MISSÃO EDUCACIONAL DA IGREJA

Mas, além de considerar o Estado em face da sociedade temporal no campo do ensino, devemos abordar outro importantíssimo aspecto dessa questão, que vem a ser o Estado perante a missão educacional da Igreja. É aqui o campo onde o laicismo revolucionário vem causando maiores estragos, a ponto de confundir as ideias até de alguns católicos.
Com efeito, é a Igreja uma sociedade perfeita, e para cumprir sua divina missão dispõe de poder que Lhe é próprio. Ora, não há poder sem autoridade. Autoridade vem de autor, e Autor por excelência é Deus, que fez tudo o que existe no Céu e na terra e dispõe de um direito sem limites sobre todas as criaturas.
E assim como é aos pais, enquanto autores da vida natural, que Deus delega originariamente autoridade para desenvolver essa mesma vida no seio da família, assim também, em esfera mais alta, a Igreja, fundada pelo Divino Salvador, é que tem por direito próprio autoridade para desenvolver a vida sobrenatural.
Ora, a ordem natural deve estar subordinada à ordem sobrenatural e servi-la. Portanto, a educação natural, longe de se achar em oposição com a educação sobrenatural ou lhe ser indiferente, deve estar subordinada a esta e favorecê-la. E assim a Igreja, diretamente encarregada da educação sobrenatural, em razão de sua missão espiritual tem indiretamente um direito de alta vigilância sobre a própria instrução natural. Cabe, portanto, à Igreja não somente o direito de possuir seminários destinados à formação espiritual de seus levitas, mas também o de manter escolas próprias, tais como universidades e institutos de educação secundária e primária, onde, além da formação espiritual, a juventude se instrua quanto à ciência das coisas naturais.
Por outras palavras, para os católicos nada existe de exclusivamente profano e laico no campo educacional, pois todo ele deve estar impregnado do suave perfume de Cristo. Nem é por outra razão que a Santa Igreja sempre incentivou, favoreceu e desenvolveu essa mesma educação natural através de várias obras de zelo. E eis porque foi condenada a proposição segundo a qual “os católicos podem aprovar um sistema de educação que esteja separado da Fé católica e do poder da Igreja, e que tenha por objeto único, ou pelo menos principal, a ciência das coisas naturais e o que se limita à vida social deste mundo” (proposição n.° 48 do Syllabus de Pio IX, de 8 de dezembro de 1864).

O PROGRAMA DA REVOLUÇÃO

O ensino leigo vem sendo promovido pela Revolução como um meio de excluir da instrução pública toda influência sobrenatural e a verdade revelada por Deus aos homens. Estamos hoje colhendo os amargos frutos de árvores plantadas há muito tempo pelos mentores dessa conjuração universal. Assim é que um dos mais proeminentes corifeus da escola leiga no século passado foi Paul Bert. Ouçamos o que há cerca de oitenta anos já dizia esse façanhudo precursor daqueles que hoje lançam vitupérios à escola chamada “confessional”: “O laicismo do ensino consiste primeiramente em alijar a Igreja. Ela se acha fora de causa, não nos devemos ocupar dEla; não mais podemos discutir com Ela. A crítica e a ciência não têm que prestar contas aos Bispos. Cumpre que no ensino o dogma e o milagre sejam colocados de lado, que não mais se fale deles, que não mais nos ocupemos nem de os atacar nem de os defender, que se tenha a Igreja como coisa morta, ou como coisa transcendente e indefinível, na qual os métodos do espírito humano não encontram atrativo; isto basta, e eis então a instrução leiga” (in artigo na “Revue des Deux Mondes” de 1883, apud D. Paul Benoit, “La Cité Antichrétienne au XIXe. Siècle”, t. 1, p. 165).
De Paul Bert a Maritain, passamos desse laicismo descabelado para um suspeito e estranho laicismo cristão, que muito concorreu para que extensas camadas da opinião católica viessem a engolir como alimento o que ontem era um veneno letal do qual só não se afastavam horrorizados os impenitentes livres-pensadores da civilização do bico de gás. De modo tal que muitos filhos da Igreja concordarão hoje em dia com quem sustentar que “todo o regime das escolas públicas em que se instrui a juventude de um Estado cristão pode e deve ser atribuído à autoridade civil, e isso de tal maneira que não se reconheça a nenhuma outra autoridade o direito de imiscuir-se na disciplina das escolas, no plano de estudos, na colação de graus, na escolha ou aprovação de mestres”. Entretanto, o que aí fica entre aspas reproduz, em sua essência, a proposição condenada sob n.° 45, pelo Syllabus de Pio IX.

A VERDADEIRA SOLUÇÃO

Por tudo isto, terminemos por repetir o que, para o caso de sua pátria, incisivamente afirmou um arguto e ardoroso publicista francês, a saber, que “não se resolverá o problema escolar enquanto o direito da Igreja não for reconhecido, tal qual é, em seus capítulos fundamentais” (Padre Raymond Dulac, artigo “Faut-il supprimer l'école libre?”, em “La Pensée Catholique”, n.° 15, 1950).
A questão é muito mais vasta do que se oferece às superficiais mentalidades modernas, e põe em foco outros aspectos da ação do Estado totalitário no mundo de hoje. A real adversária tanto do nazismo quanto do comunismo, não é nem nunca foi a democracia liberal, mas a Santa Igreja Católica. Com efeito, o democratismo liberal, em questões fundamentais como a da escola livre, dá as mãos aos ferrabrases das democracias populares de além cortina de ferro.
Guardiã da lei natural e da Revelação, a Santa Igreja Se encontra sempre na estacada para defender os legítimos direitos da sociedade humana diante do opressor totalitário. Também assim no caso particular da educação. Como o Estado não é a fonte única nem primeira de todos os direitos, vemos que à família e a grupos profissionais, artísticos e regionais também pertence o direito e o dever de se desincumbir da missão educacional. Longe de aspirar ao monopólio do ensino, o Estado deve aliar-se harmonicamente à Igreja bem como à família e aos grupos intermediários para a realização dessa importante tarefa cultural. É o amoroso convite que lhe dirige a Santa Sé: “A educação é necessariamente obra do homem associado, não do homem isolado. Pois bem, existem três sociedades necessárias estabelecidas por Deus, em cujo seio o homem vem ao mundo: a família, a sociedade civil, a Igreja. A educação, que se dirige ao homem completo, indivíduo e ser social, na ordem da natureza e na ordem da graça, pertence a essas três sociedades, em uma medida proporcionada a seus fins respectivos” (Pio XI na Encíclica “Divini illius Magistri”).
Somente com o reconhecimento, pelo Estado, desses direitos da Igreja, da família e dos grupos intermediários, e com a ajuda dos poderes públicos à obra educacional assim considerada, é que realmente poderá ser alcançado o ideal de uma sã, de uma verdadeira educação para todos. E desse modo o Brasil católico abandonará o ranço do laicismo, para voltar às verdadeiras fontes de sua grandeza.
(Cunha Alvarenga, 1960)