Depois que o Santo Padre Pio IX
distribuiu o projeto do "Syllabus" aos bispos presentes em Roma para
a canonização dos mártires japoneses, não foi segredo para mais ninguém que a
Santa Sé preparava um documento condenando o liberalismo católico. Os próprios
governos tiveram conhecimento do projeto. Alarmados, procuraram impedir ou
retardar a sua publicação, quer por via diplomática, quer auxiliando os
movimentos que os católicos liberais multiplicaram, na esperança de colocar o
Santo Padre diante do fato consumado.
O encontro no castelo de La
Roche-en-Brény não foi um fato isolado, e nem só na França os chefes
eclesiásticos e leigos da facção liberal se reuniram para estudar a situação e
provocar um recrudescimento da expansão das suas idéias. Assim, a campanha
católico-liberal chegou em 1863 a tomar aspecto internacional.
Na Inglaterra, onde o Cardeal
Wiseman, Ward e o futuro Cardeal Manning tinham formado um movimento católico
pujante e ultramontano, Lord John Acton punha todo o seu prestígio e fortuna a
serviço do catolicismo liberal. Seu primeiro jornal, "The Rambler",
não encontrava eco na opinião católica, apesar de contar com Montalembert,
Mons. Dupanloup, o Pe. Gratry, Doellinger e de Rossi entre seus colaboradores.
Nem a intervenção de Newman conseguia impedir que os ultramontanos
pulverizassem com seus argumentos os sofismas da folha liberal. Em abril de
1862, o episcopado inglês condenou publicamente alguns de seus artigos.
"The Rambler" desapareceu, mas Lord Acton, não se dando por vencido,
lançou pouco depois um novo periódico, "The Home and Foreign Review".
Na Alemanha o catolicismo liberal
se apresentava sob aspecto diferente. Não era nas grandes questões políticas
que ele se chocava com os ultramontanos, mas sim nas nitidamente teológicas. Os
teólogos liberais alemães tinham como chefe Ignaz von Doellinger, prodígio de
erudição, cheio de todas as qualidades e todos os defeitos e vícios do
cientificismo. Desesperado com o reflorescimento da Escolástica, que desprezava
em nome da ciência, organizou ele um congresso de cientistas católicos com o
fim de "fazer explodir entre os teólogos uma verdadeira guerra civil e
concentrar suas forças vivas contra o inimigo comum": a Escolástica e a
Santa Sé. Apesar da desaprovação do Núncio e de alguns bispos alemães, o
congresso se realizou em Munich, em 1863, sob a presidência do próprio
Doellinger.
Foi na Bélgica, porém, que teve
lugar a maior manifestação de força e prestígio do catolicismo liberal. Um
grupo de eclesiásticos e leigos belgas, entre os quais o Barão Gerlach e A.
Dechamps, teve a idéia de reunir um grande congresso em Malines. O objetivo
declarado era promover um encontro dos líderes católicos de todos os países,
para apresentar ao mundo uma descrição bastante fiel do catolicismo da época. A
orientação do conclave, no entanto, foi completamente liberal. Dechamps chegou
mesmo a declarar a Montalembert, na carta em que o convidava a ser um de seus
oradores: "Uma tribuna da maior repercussão se abre para vós: um auditório
composto de católicos, de bispos, de padres, de religiosos de todas as Ordens,
de fiéis de todas as obras, se prepara para vos aplaudir. É necessário que
ocupeis essa tribuna; é preciso que vos sirvais desse auditório em benefício de
nossa causa comum. Importa no mais alto grau que o resultado seja liberal, e
que o programa que dele sair seja o vosso: o catolicismo e a liberdade. Se
faltardes, o fim não será atingido".
Montalembert, apesar de doente,
aceitou o convite e preparou dois discursos na linha do que ficara resolvido na
reunião de La Roche-en-Brény. Seu temperamento batalhador e ardente o levou tão
longe, e a tal ponto explicitou as teses liberais, que seus próprios amigos
desaprovaram os textos que ele lhes submeteu. O Príncipe de Broglie pediu-lhe
que cancelasse ou refizesse algumas de suas partes. Montalembert recusou,
alegando que era tempo de se dizer tudo, e que o estado de sua saúde não lhe
permitia mais protelações.
Os liberais franceses chegaram a
Malines dois dias depois de iniciado o congresso, e se dirigiram logo para o
local das sessões. A entrada de Montalembert foi saudada por uma tempestade de
aplausos. A assembléia, que se compunha de mil assistentes, o aclamou com as
palavras: "Viva o filho dos cruzados! Viva o Conde de Montalembert!"
Nessa mesma reunião ele pronunciou
o primeiro dos discursos que preparara, e no dia seguinte completou seu
pensamento com o segundo. Defendia a célebre fórmula "a Igreja livre no
Estado livre", que Cavour imediatamente adotou na luta contra a Santa Sé.
O congresso acolheu entusiasticamente as palavras de Montalembert, exceção
feita dos católicos ultramontanos presentes, que timbraram em demonstrar a sua
desaprovação. Esses dois discursos alcançaram o objetivo visado por Dechamps: o
congresso de Malines se definia nitidamente liberal e o movimento adquiria um
caráter internacional.
A Santa Sé via com mágoa o
desenvolvimento da política dos católicos liberais, e não podia permanecer
calada diante do verdadeiro levante que a simples notícia da preparação do
"Syllabus" provocara.
Em dezembro de 1863, Roma
condenou o congresso dos cientistas católicos, proibindo mesmo novas
realizações do gênero. Lord Acton, que o apoiara com entusiasmo no "The
Home and Foreign Review", foi obrigado a suspender a publicação de seu
periódico.
Mais grave era a questão de
Malines. Montalembert prestara grandes serviços à Igreja e contava com o apoio
de intelectuais franceses, ingleses, alemães e belgas. Mas os protestos contra
o seu discurso chegavam a Roma sem cessar, e polêmicas violentas se levantavam
a respeito em todo o mundo. Vendo a gravidade da situação, Mons. Dupanloup
imediatamente foi a Roma, numa tentativa de defender o amigo e evitar a sua
condenação. Mas Pio IX já resolvera intervir contra Montalembert, se bem que,
em atenção a seu passado, se limitasse a mandar o Secretário de Estado, Cardeal
Antonelli, escrever-lhe uma carta censurando os seus discursos.
Quando teve conhecimento do texto
da carta, o Bispo de Orléans permitiu-se dizer ao Cardeal Antonelli: "Vós
não enviareis isto. Quero ver o Papa, peço-o como amigo do Sr. de Montalembert.
Peço-o sobretudo como bispo francês. Trata-se de uma questão que interessa à
França no mais alto grau. Quais são os juízes? Quais os examinadores que deram
essa sentença? Peço para vê-los, ouvi-los, discutir com eles".
Pio IX não recebeu Mons.
Dupanloup, e a carta foi enviada a Montalembert. Nela, depois de elogiá-lo, o
Secretário de Estado lembra as polêmicas provocadas pelos seus discursos e o
número bastante grande de pessoas que lhes punham em dúvida a ortodoxia. Nessas
condições, o Santo Padre ordenava um exame da questão. Continuava o Cardeal
Antonelli: "Sinto comunicar que o resultado do exame provou que as
acusações contra os discursos tinham fundamento. Eles são repreensíveis, pelo
conflito em que se encontram com os ensinamentos da Igreja Católica e com os
atos emanados de diversos Soberanos Pontífices, especialmente com as máximas
ensinadas em diversos breves e alocuções de Pio VI, em um dos quais, com a data
de 26 de setembro de 1791, ele caracteriza como plane exitiosum et pestilens
esse edito de Nantes, exaltado com tantos elogios nos referidos discursos.
Essas máximas são relembradas e confirmadas na carta de Pio VII a Mons. de
Boulogne, Bispo de Troyes, em 1814; na encíclica de Gregório XVI, de 15 de agosto
de 1832, que conheceis bem; e ainda mais, em diversos atos solenes do Soberano
Pontífice reinante".
(Fernando Furquim de Almeida)