Há algum
tempo, escrevendo sobre as etapas da revolução igualitária na economia dos
países ocidentais, tivemos oportunidade de acentuar que o capitalismo
constituiu, nos séculos XIX e XX, um dos marcos dessa evolução. Admitida essa
tese histórica, não se segue, contudo, que nós, católicos, devamos adotar em
relação ao capitalismo a mesma atitude de repulsa radical que assumimos para
com o socialismo e o comunismo. Não pensam assim os chamados católicos
esquerdistas, que condenam o capitalismo considerado em si mesmo e o atacam
pelo menos com a mesma violência com que criticam certos aspectos do marxismo
ou dos sistemas socialistas. Propomo-nos, por isso, neste artigo, submeter o
regime capitalista a uma breve análise crítica à luz da doutrina da Igreja, que
nos capacite a apontar qual das duas posições indicadas pode ser reputada
ortodoxa. Comecemos por considerar o que é concretamente o capitalismo.
Para um
exame em profundidade vamos tomar o problema sob vários aspectos: o econômico,
o social e o moral.
Sob o
aspecto econômico, o capitalismo é o sistema caracterizado pela
aceitação do princípio da livre iniciativa na ação econômica dos indivíduos. A
mola propulsora dessa iniciativa se encontra no desejo de lucro. Os indivíduos
fundam empresas e procuram expandir suas atividades tendo em vista auferir
lucros. Quanto maior a ambição, maior será o número de iniciativas, de
empreendimentos, de invenções, etc. Outra instituição típica do capitalismo é a
do salariado, que consiste no aluguel do trabalho, mediante remuneração em
dinheiro ou, em casos excepcionais, em espécie. Que o salariado nada tem de
contrário à dignidade da pessoa humana, já o declarou o Papa Pio XI, afirmando
que, em si, nada apresenta ele de intrinsecamente mau («Quadragesimo Anno») .
Do ponto
de vista econômico, e considerando-o apenas em seus princípios, nada temos a
censurar no capitalismo.
Sob o
aspecto social, nota-se que neste sistema a diferenciação das
classes está baseada quase exclusivamente na predominância dos valores
monetários. As camadas superiores da população deixam, em grande parte, de ser
constituídas segundo o critério do sangue e dos serviços prestados ao Rei ou
outros superiores hierárquicos, como na Idade Média, para surgirem como uma
decorrência da posse de riquezas.
Em
consequência da ação desse princípio selecionador das classes altas, observa-se
no capitalismo uma acentuada capilaridade social, isto é, resultam muito
numerosos os casos de ascensão rápida às culminâncias da sociedade, e de rápida
decadência de membros da oligarquia dominante. Esse fenômeno, muito marcante
nos Estados Unidos, onde o capitalismo atingiu um elevado grau de coerência e
de desenvolvimento, talvez seja menos visível em outros países de aquém cortina
de ferro, mas atua em todos eles.
É óbvio
que essa forte capilaridade se traduz numa periódica e célere rotação das
elites. A instabilidade que isso acarreta para a vida social é flagrante.
A
preservação da civilização católica exigiria um sistema diferente, capaz de
garantir a transmissão durante muitas gerações, dos caracteres, dos hábitos e
dos progressos morais adquiridos pelos indivíduos e pelas famílias.
Evidentemente, nunca poderá a humanidade, como tal, superar de todo as
deficiências decorrentes do pecado original, mas, na medida em que uma
civilização se cristianiza, tende a converter em hábito social as virtudes
cristãs. Tais hábitos devem impregnar a vida social a ponto de se transformarem
quase numa segunda natureza, que os indivíduos adquirem como que
insensivelmente, apenas pelo fato de viverem nesse ambiente são e católico.
Mas, para isso, é necessário que as famílias, especialmente as aristocráticas,
possam manter-se, por muitas e muitas gerações, sem precisar entregar-se a
atividade econômicas demasiado absorventes.
Não queremos
dizer que o dinheiro deva ser absolutamente condenado como elemento
diferenciador das classes sociais. O que pretendemos afirmar é que ele não é o
único nem pode ser o principal elemento dessa diferenciação. Na Idade Média e
no «Ancien Régime» o acesso à nobreza só se fazia depois que a família
pretendente a esse estatuto provasse que por três ou quatro gerações gozara de
fortuna e tivera um padrão de vida correspondente ao de nobre, e que, além
disso, prestara ao Rei serviços capazes de justificar a promoção. Desse modo,
as elites se depuravam lentamente e tinham tempo (contado por gerações) de
absorver os hábitos, os sentimentos e, em certo sentido, a atitude psicológica
da aristocracia. Quando é principalmente ou quase exclusivamente o dinheiro que
distingue e diferencia as classes, deixa de haver esse cuidadoso processo de
seleção e aprimoramento. As famílias mantêm-se pouco tempo na primeira plana,
pois ou descuidam de suas fortunas para se dedicarem à cultura, e estarão assim
condenados a empobrecer e a perder sua posição, ou, para evitá-lo, são
absorvidas pela vida econômica e abandonam a vida de cultura. Por um processo
ou por outro, estão as elites dirigentes fadadas a uma continua renovação das
famílias que as compõem. Aquela estabilidade necessária ao refinamento e ao
aprimoramento da cultura deixa de existir. Esse sistema de intensa capilaridade
social traz consigo o gosto das novidades, inclinação que, exagerada, contribui
para romper os vínculos que devem normalmente ligar as gerações, e que pelo
contrario são muito fortalecidos pela conservação de objetos e ambientes
antigos, especialmente quando tenham pertencido a uma mesma família durante
séculos.
No campo
ético não se pode silenciar sobre um princípio que tem sido aceito com frequência,
pelo capitalismo, como verdade indiscutível: o da independência da economia
face à moral. Houve um tratadista que chegou a extrair desse postulado todas as
suas consequências, a ponto de afirmar que comete um erro econômico quem,
podendo roubar, não rouba. Na realidade, poucos subscreveriam essa afirmação, o
que não impede que o sistema capitalista, considerado em concreto, tenha vivido
mais ou menos sob o império desse princípio.
Sob o
aspecto moral não se pode aceitar a exploração de paixões
humanas inferiores, como molas propulsoras da economia. E o que tem sido feito,
por tantos capitalistas, com a ambição de enriquecer e a inveja dos superiores.
Há em todo homem um desejo, que pode ser sadio e ordenado, de melhorar as
condições materiais de sua vida, mas o capitalismo tem procurado exacerbar essa
inclinação, despertando nos indivíduos necessidades fictícias que os levam a
aplicar à atividade econômica todas as suas energias e capacidades, e
desviando-os de qualquer outra manifestação de sua personalidade. Vida de
família, cultura, religião, tudo é sacrificado ao «grande ideal» do
enriquecimento, que por sua vez garante aos indivíduos a ascensão social.
Como se
vê, essas apreciações morais atingem o capitalismo como ele historicamente
existiu. Entretanto, considerado esse regime sem os abusos a que se prestou, e
tão somente em seus aspectos mais essenciais, não se pode dizer que tenha ele
qualquer coisa de contrário à justiça e à caridade.
A lista
de aspectos do capitalismo que apresentamos é exemplificativa, não pretende
esgotar as características desse sistema; mas é satisfatória para os propósitos
deste artigo. Essa enumeração já nos parece suficiente para justificar a
afirmação de que o capitalismo não corresponde ao ideal de uma civilização católica,
mas não é tampouco a realização do seu extremo oposto.
É em
princípio, um sistema legítimo, se bem que esteja longe de ser perfeito. Há
nele o respeito a, pelo menos, dois valores ou direitos fundamentais da pessoa
humana, a saber: a propriedade particular, e a preeminência do indivíduo sobre
o Estado. O capitalismo permite que subsista a desigualdade social, embora
tenda a alterar constantemente, através de uma rotação rápida e continua, a
composição das elites e classes superiores. A propriedade e a livre iniciativa
constituem nele um poderoso obstáculo à realização do igualitarismo social,
pois ambas implicam na aceitação do princípio de que os homens podem ter
padrões de vida muito diversos, de acordo com seus esforços, capacidade de
trabalho e inteligência. Se há censuras a dirigir ao capitalismo, não é porque
ele defende a propriedade privada e a iniciativa individual.
Os
esquerdistas, mesmo católicos, combatem esse sistema, não pelos seus aspectos
igualitários, mas pelo que ele conserva de tradicional e que impede a plena
implantação do igualitarismo, ou seja, sobretudo, pela manutenção do instituto
da propriedade privada. De fato, na linguagem das esquerdas, capitalismo e
propriedade particular são sinônimos, e as críticas dirigidas ao primeiro são
no fundo ataques à segunda.
Não pode
um católico combater o capitalismo com esses argumentos. Sua crítica será
oposta à dos esquerdistas. O católico censurará esse sistema por sua tendência
para o nivelamento social, ao passo que o esquerdista o condena justamente
porque ele obsta a eclosão do pleno igualitarismo, através do instituto da
propriedade particular e do princípio da livre iniciativa.
Apontando
no capitalismo, tal como se realizou nos séculos XIX e XX, um passo importante
para a revolução universal, não podemos todavia desconhecer que subsistem nele
instituições inspiradas pelo direito natural e que o fazem defensável pelos
católicos, sem qualquer escrúpulo de consciência.
Diz-se
que Marx costumava comentar que o capitalismo era um mal em face do socialismo,
mas um bem diante da Idade Media, porque significava um passo em direção
contraria a esta última. Invertendo
os termos, nós, católicos, podemos usar esta fórmula: em relação à Idade Média
o capitalismo representa um mal, mas comparado ao socialismo é um bem, e como
tal defensável.
(Luiz
Mendonça de Freitas, Outubro de 1958)
(1) N. da
R. — "As hábeis gradações da socialização universal", n.º 71,
novembro de 1956.