sábado, 20 de outubro de 2018

397ª Nota - Filosofia da História ou Gnosticismo da História?




Em 1957 saiu a lume um novo livro do Sr. Jacques Maritain (1), livro esse que encerra um curso sobre filosofia da história dado em seminários na Universidade norte-americana de Notre Dame.
Nesse trabalho, o autor procura formular sua concepção da filosofia da história à luz de teses já conhecidas, que encontramos no "Humanisme Integral", “Du Regime Temporel et la Liberté”, "La Personne et le Bien Commun", "Christianisme et Démocratie", "Man and the State".
Mas, "On the Philosophy of History" não consiste somente em teses conhecidas. Maritain apresenta nele algo novo, que ainda não tinha sido explicitado em suas obras anteriores, embora já se encontrasse em germe na ambiguidade e obscuridade do pensamento desse pseudotomista. Queremos no presente artigo focalizar a atenção sobre esse aspecto do livro, que podemos resumir nos seguintes tópicos: a relação entre filosofia da história e teologia, o conceito evolutivo da história, e a relação entre natureza e graça.
Antes de entrarmos no assunto, cabe uma observação: certas suspeitas do Pe. Messineo (2) assim como certas conclusões do Sr. Cunha Alvarenga (3) parecem encontrar confirmação em "On the Philosophy of History.". Podemos dizer que este livro explicita mais ainda a existência de uma neurose dualista de sabor gnóstico perseguindo o pensamento maritainiano e consubstanciada nas distinções indivíduo - pessoa, espírito - matéria, cristandade-cristianismo, Igreja-Estado, graça-natureza, as quais possuem um sentido bem diferente no ensino tradicional da Igreja; este livro parece mostrar também que, na base dos erros de seu autor, existe uma concepção modernista da ordem sobrenatural.

A) Uma distinção entre filosofia da história e teologia da história que não pode subsistir.
Dentro do contexto deste artigo não seria cabível uma análise crítica do conceito de filosofia da história de Maritain, já que, para isso, teríamos que enveredar pelo plano puramente filosófico, alheio ao escopo que temos em vista. A este respeito, apenas diremos que a formulação de filosofia da história, feita pelo filósofo francês, não pode ser aceita sem objeções do ponto de vista da teoria do conhecimento. O que nos interessa no momento é a relação que Maritain estabelece entre filosofia da história e teologia da história. Vejamos o que diz ele sobre esta distinção. Citemos o seguinte trecho: "Existe uma teologia da história, que está centrada no Reino de Deus e na história da salvação — uma teologia da história da salvação — e que considera os dois desenvolvimentos, do mundo e da Igreja, mas do ponto de vista do desenvolvimento da Igreja. E existe uma filosofia da história, que está centrada no mundo e na história das civilizações, e que considera os dois desenvolvimentos, da Igreja e do mundo, do ponto de vista do desenvolvimento do mundo. Em outras palavras, a teologia da história está colocada no centro do mistério da Igreja, enquanto considera a relação deste com o mundo; por outro lado, a filosofia da história está colocada no centro do mistério do mundo, enquanto considerado em relação com a Igreja, com o Reino de Deus no estado de peregrinação" (4).
Esta distinção é estranha. Sabemos pela Fé que o mistério do mundo se encontra nos planos de Deus realizados no Sacrifício do Calvário, o que significa que o mistério do mundo está também no mistério da Igreja; a história do mundo só tem sentido quando vista à luz da história da Igreja. Quando o Apóstolo São João descreve o Cordeiro de Deus abrindo o livro dos sete selos (5), ele nos mostra Jesus Cristo como Aquele que detém os segredos da história, que faz executar os planos divinos na história a partir do mistério do Calvário. Ora, como Jesus Cristo é a cabeça da Igreja, temos que o mistério do mundo está no mistério da Igreja. Em outros termos: o mistério da história do mundo e da Igreja é de caráter sobrenatural, e portanto só pode ser estudado à luz da Fé. Quer dizer: uma verdadeira filosofia da história só pode ser teologia da história.
A doutrina maritainista admite como legítima uma análise profana da história da Igreja, consubstanciada numa distinção especiosa. Isso se parece com a visualização modernista da história, condenada por São Pio X na "Pascendi", segundo a qual existe uma diferença entre uma Igreja da Fé e uma Igreja da história, um Cristo da Fé e um Cristo da história. Já podemos ver como essa distinção se parece com a conhecida distinção entre cristandade sacral e cristandade profana.
Santo Agostinho, em "A Cidade de Deus", não estabelece distinção dessa ordem, e faz o estudo da história em função da filosofia e da teologia simultaneamente, mostrando com isso que a história possui um sentido último que é de ordem sobrenatural. Por conseguinte, não há lugar para um estudo profano da história da Igreja.
Esta distinção maritainiana afigurar-se-á inocente se considerarmos que, na prática, o autor de "On the Philosophy of History" tem sempre em conta os dados da Revelação. Mas; acontece que essa distinção, estabelecida no plano teórico, diz respeito a uma concepção das relações entre ordem natural e sobrenatural que parece obedecer, em Maritain, a um contexto de ideias não ortodoxo. É o que teremos oportunidade de ver mais pormenorizadamente no correr deste artigo.

B) Conceito evolutivo de história, onde aparece a dialética de Hegel.
O Pe. Messineo, analisando o estranho conceito evolutivo de história do "Humanisme Integral", faz o seguinte comentário: "E, no entanto, a filosofia de Maritain não se funda na dialética de Hegel, de onde a dificuldade de enquadrar essas afirmações de sabor dialético no seu sistema filosófico; nem acreditamos que seu historicismo possa ser reduzido ao sistema idealista de Benedetto Croce, da síntese dos contrários. Semelhanças externas, certamente, mas que fazem pensar" (8).
A perplexidade do ilustre Jesuíta é muito justa, pois Maritain se apresenta como tomista e, ao mesmo tempo, desenvolve uma teoria evolucionista da história com sabor hegeliano. Em "On the Philosophy of History" o sabor é acrescido do rótulo respectivo. É o próprio autor quem o exibe. O que parecia semelhança externa no "Humanisme Integral" e outros livros, não o é nesta nova obra. Nela se faz uma análise crítica do sistema hegeliano, em que corretamente se rejeita o idealismo e o apriorismo da metafísica do pensador alemão. Um filósofo de formação realista e católica poderia sem dificuldade aceitar essa crítica, se ela não terminasse pela aceitação do próprio mecanismo da dialética da síntese dos contrários. Deixemos Maritain falar: "Havia em Hegel, como em todo grande filósofo, uma intuição básica que diz respeito à experiência, à realidade, e não simplesmente aos entia rationis ou entidades de sua dialética feitas pela razão. E esta intuição básica tem sido descrita como a intuição da mobilidade e inquietação que são essenciais para a vida, e especialmente para o ser do homem, que nunca é o que ele é, e é sempre o que ele não é. Noutros termos, poderíamos dizer que é a intuição da realidade como história, isto é, como mobilidade, como movimento, como mudança, mudança perpétua" (7).
Parece claro: a metafísica idealista de Hegel ("as entidades de sua dialética feitas pela razão") é rejeitada, mas subsiste uma intuição básica, que é a própria dialética da síntese dos contrários ("intuição da realidade como mudança perpétua"). Mais adiante, o autor dá os ingredientes que completam o rótulo. Vejamos como esse pseudotomista ingere a pílula da dialética hegeliana. Maritain faz passar a Ideia de Hegel pelo filtro de sua filosofia-alquimia, de onde extrai a tal intuição básica com o seguinte raciocino: "Estas ideias históricas - formas imanentes no tempo, por assim dizer - pressupõem a natureza, o ser das coisas e o ser do homem, não têm nada a ver com a Ideia hegeliana e os processos autogeradores da lógica crítica de Hegel. Além do mais, essas ideias históricas estão longe de constituir toda a história. Por admissão, se considerarmos a maneira pela qual essas ideias históricas atuam na história, pode-se dizer que cada uma delas, cada uma dessas formas imanentes no tempo, pode atingir seu acabamento final no tempo só pela provocação de seu oposto e negando-se a si mesma. Mas por que é assim? É porque o seu próprio triunfo exaure as potencialidades que a incoam, e ao mesmo tempo desmascara e provoca no abismo do real as potencialidades opostas. Aqui está uma interpretação que nada tem a ver com a alienação e integração dialética, mas que mostra, segundo me parece, que a história ofereceu a Hegel um tipo de material aparentado com sua filosofia geral" (8).
Em Hegel, a realidade se identifica com o vir-a-ser de uma Ideia absoluta que absorve toda a realidade numa espécie de panteísmo; essa Ideia, semelhante ao "todo transcendente" dos sistemas gnósticos, é intrinsecamente instável, estando sujeita a um evolucionismo que obedece ao seguinte processo: a Ideia se nega provocando seu oposto, que por outro lado, num momento seguinte, constitui uma síntese com a Ideia inicial; esta síntese é uma nova Ideia, que passa a se negar de novo, provocando uma nova Ideia-síntese, que vem a sofrer o processo novamente. Esta é a célebre dialética hegeliana, segundo a qual procuram alguns interpretar a evolução da história.
Conforme este esquema, como podemos ver, a história progride de modo linear, sem possibilidade de restaurações de estados e culturas passadas. Maritain rejeita a Ideia absoluta, mas aceita a dialética. Isto pode muito bem explicar seu conceito progressivo da história, contido na celebre lei da tomada de consciência.
A coletividade possui certas ideias, "formas imanentes ao tempo"; pela tomada de consciência, as potencialidades dessas formas são esgotadas, gerando formas opostas, as quais, por seu lado, contêm algo de positivo (a síntese) que perdura até serem esgotadas suas possibilidades, repetindo-se o processo dialético de modo ininterrupto. Mas não é isto que está contido na teoria maritainista da formação de uma cristandade profana? Vejamos. A cristandade sacral é constituída por formas cujas possibilidades vão-se esgotando com o tempo pela tomada de consciência, que vai gerando formas opostas, consubstanciando o espírito profano. Em outros termos, a sociedade cristã esgota suas energias gerando sua própria negação, que é uma sociedade profana. Mas a negação contém algo de positivo, resultado da refração das formas contidas na sociedade cristã; de onde a constituição da síntese: sociedade cristã-profana. A cristandade sacral da Idade Média negou-se pelo esgotamento de suas energias, gerando o espírito profano, que veio constituir novas formas de potencialidades, ou seja, a cristandade profana.
Este livro nos tira da perplexidade em que nos induzia o "Humanismo Integral", e nos dá plena certeza de que seu autor utiliza a dialética de Hegel. Maritain, filosofo tomista?

C) A razão apresentada como de natureza progressiva. Um trecho curioso do Sr. Maritain.
Mencionamos, de início, invocando as conclusões do Sr. Cunha, Alvarenga, que o sistema maritainiano é de fundo gnóstico, o que está consubstanciado na dialética hegeliana utilizada por Maritain. Este último, quando critica Hegel, faz uma censura ao gnosticismo do filósofo alemão, o que não deixa de ser curioso. Citemo-lo: "O que ele (o historiador) repele na realidade não é a genuína filosofia da história, mas o gnosticismo da história — aquele gnosticismo da história levado por Hegel a supremas alturas metafísicas, mas que pode ser encontrado também, em outro nível bem diferente, num sistema tão completamente fascinado pelas ciências positivas e tão decididamente antimetafísico, como o sistema de Comte.
"Filosofia espúria da história, eis, pois, que é o gnosticismo da história, no sentido mais geral desta expressão, e na medida em que ele é caracterizado pelos quatro pecados capitais que foram mencionados logo atrás" (9).
Ora, dado que a dialética hegeliana, como tal, não está incluída nesses quatro "pecados capitais" de Henri Marrou, o sistema maritainiano não seria gnóstico. Mas, este texto que transcrevemos não visaria apenas a salvar as aparências?
É pela adesão à dialética hegeliana que o Sr. Jacques Maritain, este "profeta" de tempos tenebrosos, nega toda e qualquer volta da civilização a uma forma tradicional desejada pela Igreja e que teve realização das mais perfeitas na cristandade medieval. Numa de suas obras, afirma ele categoricamente: "Eles (cristãos hegelianos ou maritainianos) sabem que uma civilização de inspiração cristã, se e quando se desenvolve na história, de nenhum modo retornará à Idade Média, mas deverá ser uma tentativa tipicamente diferente, de fazer o fermento do Evangelho levedar as profundezas da existência temporal" (10). Claro. Pela dialética da síntese dos contrários, a história é progressiva, desenvolve-se de modo linear, não podendo haver restaurações, portanto.
Como consequência da aplicação da dialética de Hegel à história, a razão e a moral devem ser vistas como em contínuo progresso. Isto se encontra no "Humanismo Integral" e é corretamente posto em foco pelo Pe. Messineo. Lemos em "On the Philosophy of History": "A razão é por si mesma essencialmente progressiva". E mais adiante: "Em outras palavras, nosso conhecimento das leis morais é progressivo na natureza". E ainda: "Penso que este progresso da consciência moral quanto a seu conhecimento explícito da lei natural é um dos menos questionáveis exemplos do progresso da humanidade. Permitam-me frisar que não estou apontando para nenhum progresso humano no comportamento moral... Estou apontando para, um progresso da consciência moral como conhecimento dos preceitos particulares da lei natural" (11). Ora, sabemos que nem mesmo o conhecimento da lei moral é progressivo, pois conhecer a lei moral é reconhecê-la como lei normativa que visa o bem do homem, e nisto, segundo o testemunho da história, não há progresso linear. É o que se acha contido no juízo de Pio XII, de que o pecado do mundo moderno está em ter perdido a consciência do pecado. Vale dizer que houve uma decadência no conhecimento da lei moral nos últimos tempos, pois o pecado embota a inteligência a ponto de ela não compreender o sentido da lei moral. Mas o Papa desconhecia as luminosas leis de Maritain, vivificadas pela filosofia de Hegel. Poder-se-ia objetar: Maritain fala de uma lei do crescimento do bem e do mal na história, a qual ele fundamenta numa parábola evangélica (12), e que parece também estar contida na seguinte passagem do Novo Testamento: "Aquele que fere, deixai-o ferir ainda; o que é impuro, que seja mais impuro ainda; o que é justo, que se justifique mais ainda; e o que é santo, que se justifique ainda mais “(13). De acordo com este versículo, o mal, assim como a santidade, cresce até o fim dos tempos; isto não representa a lei do crescimento linear do bem e do mal? Não, e veremos porque.
Em primeiro lugar, o crescimento da santidade na história não é sinônimo do crescimento em santidade da coletividade: observemos que o texto inspirado se refere a indivíduos humanos. A sociedade pode involuir no conhecimento e na prática das leis morais, enquanto um número pequeno de homens se santifica mais e mais através dos tempos. Aliás, a história da Igreja mostra como a Providência suscita Santos de grande estatura em épocas de grande iniquidade. São Luís Grignion de Montfort afirma que os Santos dos últimos tempos - época da consumação da iniquidade - serão mais perfeitos que os dos primeiros séculos. Ora, Maritain concebe o crescimento do bem na história como próprio à sociedade toda e contido no mesmo crescimento do mal, pois, de acordo com a dialética, a tese carrega a antítese. Assim, por exemplo, os princípios da Revolução Francesa são vistos como um bem misturado com seu oposto, representado pelas violências contra a Igreja.
Além do mais, o Sr. Jacques Maritain concebe a razão humana como essencialmente progressiva; ora, sabemos pela Fé que, devido ao pecado original, ela tende, sem a ajuda da graça, mais ao erro e à decadência. A história dá testemunho em contrário a essa lei do crescimento necessário no conhecimento das leis morais. A história de Israel, por exemplo: o Rei Josias, tendo descoberto o Deuteronômio, até então escondido e esquecido por várias gerações de seus antecessores, rasgou as vestes para exprimir sua dor por ver quanto se tinham afastado da lei divina esses príncipes e o povo (14).
Observemos o seguinte: este poder progressivo da razão humana, centrado na dialética hegeliana, parece possuir uma relação de concordância com a teoria personalista de Maritain. Pois sabemos que, segundo ele, a pessoa, polo espiritual, tem um quê de sagrado; "as pessoas sobrepassam a ordem social e são diretamente ordenadas ao Todo transcendente" (15). Quer dizer: a razão humana, pertencendo à pessoa, só pode progredir, pois a pessoa tende diretamente para o Todo transcendente. Assim, a lei da evolução progressiva da história está em adequação com a sacralidade gnóstica da pessoa na concepção maritainista.
Vejamos agora mais alguma coisa sobre o personalismo e o espiritualismo deste pseudo tomista.

D) A dicotomia espírito-matéria. A pessoa pertenceria à igreja pneumática.
O Sr. Cunha Alvarenga, num de seus artigos em CATOLICISMO (16), mostrou que a distinção maritainiana indivíduo-pessoa possui uma estrutura filosófica platônica, e não tomista. Propomo-nos apontar como "On, the Philosophy of History" traz novos elementos para reforçar tal conclusão.
Segundo Maritain, os conceitos de indivíduo e pessoa, contrariamente ao que ensina São Tomás de Aquino (17), são "aspectos” (18) do ser humano, dois "polos” (19): o indivíduo é o polo material, que se encontra em tensão com a pessoa, polo espiritual. Neste ponto, queremos observar que este dualismo indivíduo-pessoa também apresenta parentesco com a dialética hegeliana. Para Hegel, a evolução da história é fruto da oposição entre a Ideia e sua negação; entre tese e antítese. Vale dizer: a tensão entre tese e antítese gera a evolução histórica. Ora, o escritor francês nos fala da tensão entre indivíduo e pessoa, onde o indivíduo é a razão de ser do mal, e a pessoa é o polo espiritual, "princípio de unidade criadora de independência e liberdade" (20), razão de ser do bem na sociedade. Assim, por exemplo, os princípios do igualitarismo da Revolução Francesa são um valor positivo, porque frutos do espírito, da tomada de consciência da pessoa, como já apontamos acima. A propósito de sua lei do crescimento do bem e do mal, estruturada sobre a dialética dos contrários, o autor de "On the Philosophy of History" se refere a essa tensão entre a energia criadora do espírito e o princípio de passividade da matéria, com as seguintes palavras: "E devemos dizer, do ponto de vista filosófico, que o movimento de progresso das sociedades no tempo depende desta lei do duplo movimento - que pode ser chamada, neste caso, lei de degradação por um lado, e lei de revitalização, por outro, da energia da história, ou da massa da atividade humana da qual depende o movimento da história. Enquanto o desgaste do tempo e a passividade da matéria naturalmente dissipam e degradam as coisas deste mundo e a energia da história, as forças criadoras que são próprias do espírito e da liberdade e que são sua prova, e que normalmente têm seu ponto de aplicação no esforço de poucos, constantemente revitalizam a qualidade desta energia". A seguir, diz: "Ela (a vida das sociedades humanas) avança e progride graças à vitalização ou, superelevação da energia da história emergindo do espírito e da liberdade humana. Mas, ao mesmo tempo, esta mesma energia da história é degradada e dissipada por motivo da passividade da matéria" (21).
Este trecho do livro que estamos considerando relaciona a tensão dialética da tese-antítese com a tensão espírito-matéria. Como a tensão espírito-matéria equivale à tensão indivíduo-pessoa, concluímos que há interdependência lógica entre a tensão indivíduo-pessoa e a tensão dialética tese-antítese. Vemos, assim, como a teoria do dualismo indivíduo-pessoa se encaixa de modo perfeito na "intuição básica" (7) de Hegel. Essa tensão entre espírito e matéria é de cunho platônico, pois, para Platão, espírito e matéria encontram-se numa oposição de incompatibilidade; tal oposição é típica na luta dialética entre tese e antítese e na concepção maritainiana da distinção entre espírito e matéria.
Acentuemos também que nos trechos citados o autor faz da matéria o princípio do mal. Como explicaria o pecado dos anjos? Ou será que ele admitiria nos anjos?
Isso tudo gera uma falsa espiritualidade. Vejamos o que Maritain entende por espiritualidade. Mostra-se pródigo em elogios ao Maatma Gandhi em seus livros "Du Régime Temporel et la Liberté", "Man and the State" e "On the Philosophy of History". Nesta última obra encontramos a seguinte referência àquele pagão: "Gostaria de frisar que Gandhi não foi só uma excepcional figura de profeta. Ele deve ser considerado como o fundador de uma escola de pensamento" (22). Ora, quem foi o Maatma? Um herdeiro nada original do pensamento brâmane. Toda a sua teoria da não violência é tão velha quanto a Índia, pois está baseada na antiquíssima doutrina brâmane de que a matéria é má, a individualidade é má, o agir segundo a razão é mau, e o homem tem que se libertar disto pela passividade absoluta, a fim de poder imergir no Todo panteísta. Para o bramanismo, qualquer disputa, polêmica, luta armada, é um mal, pois é ação que deriva da individualidade, a qual deve ser destruída.
As simpatias de Maritain por um homem cujo "background" moral e intelectual é esse, são muito sintomáticas. Citemos uma passagem do livro que estamos focalizando. Lê-se ali, a respeito da essência da vida espiritual: "A pura essência do espiritual deve ser achada na atividade totalmente imanente, na contemplação, cuja eficácia peculiar em tocar o coração de Deus não perturba nenhum átomo na terra. Quanto mais perto se chega da pura essência do espiritual, tanto mais leves, menos palpáveis, e mais espontaneamente agudos se tornam os meios temporais empregados em seu serviço. E essa é a condição de sua eficácia" (21). Não é propriamente isto que a Santa Igreja considera como vida espiritual. "Atividade totalmente imanente" e que "não perturba nenhum átomo da terra" não é, em si, o que constitui a vida espiritual; isto é mais imaterialismo brâmane do que doutrina católica.
São Tomás de Aquino ensina que o prêmio eterno dos Príncipes santos é dos maiores, porque o governo dos outros é mais difícil do que o difícil governo de si mesmo (24). Ora, isto significa que a temporal e materialmente pesada atividade de um Rei é atividade espiritual. A doutrina católica não identifica espiritualidade com imaterialidade pura. A defesa da Igreja por meio da espada é atividade espiritual sob certo título, assim como a atividade contemplativa o é sob outro. O espiritualismo maritainista apresenta sabor brâmane. Não é, pois, à toa que Gandhi é tão cultuado por Maritain e seus seguidores.
Esta fábula sobre espiritualidade contém, em germe um erro teológico. A tensão indivíduo-pessoa já sugere que o Sr. Jacques Maritain possui um conceito errado da ordem da graça. Vejamos que esclarecimentos nos pode fornecer ainda o "On the Philosophy of History".
Parece que seu autor identifica o dualismo natureza-graça com o dualismo temporal-espiritual. O fato de ele considerar a heresia igualitária da Revolução Francesa, "obra do espírito", como de "inspiração cristã", nos está sugerindo isto; mas deixemos tal assunto para a última parte deste artigo, e citemos o seguinte texto: "O teólogo da história observará que através do tempo, e apesar do impulso permanente destas sociedades (as igrejas heréticas e cismáticas) para a separação, em número sempre maior os que nascem em tais comunidades religiosas se tornam, por motivo de sua boa fé, isentos do pecado do cisma e da heresia, de modo que essas comunidades não deveriam ser chamadas de heréticas ou cismáticas, mas simplesmente dissidentes" (25). Uma coisa é questão relativa à boa fé, a qual se refere à vontade, outra é questão relativa ao cisma e à heresia, que antes de tudo diz respeito à ordem doutrinaria. Sabemos que um luterano não deixa de ser herege pelo simples fato de estar de boa-fé. Aquela afirmação absurda de Maritain tem uma explicação: os indivíduos destas religiões falsas não são católicos, mas a pessoa, ah!, pelo fato de estar "diretamente ordenada à beatitude" (25) pertence necessariamente à Igreja. Isso tudo não sugere que o indivíduo, não pertencendo à Igreja visível, se encontra ligado a uma pessoa necessariamente pertinente a uma Igreja pneumática (26)?

E) A Concepção Maritainiana da Ordem Sobrenatural. Esclarecimento do novo livro: modernismo.
O Pe. Messineo, na crítica que dirige ao "Humanisme Intégral" (26), mostra que seu autor faz uma distinção entre Religião e civilização de que resulta ficar a primeira localizada fora do tempo e do espaço. Trata-se simplesmente de uma dicotomia idêntica à que Maritain estabelece entre indivíduo e pessoa, entre espírito e matéria. A distinção é uma separação. Este "leitmotiv" da dicotomia, da tensão entre contrários, se manifesta em todo o pensamento desse pseudo tomista, e vamos encontrá-lo sob a forma Igreja-corpo político em "Man and the State". Neste livro vemos esta dicotomia sugerindo a idéia da Igreja pneumática, a qual se apresenta mais claramente em "On the Philosophy of History". Em "Man and the State" se sustenta que o corpo político é uma entidade temporal visível, e a Igreja é atemporal e invisível no "mistério da graça e caridade vivificando as almas humanas, mesmo aquelas que pertencem ao corpo da Igreja sem o saber e somente pelo movimento interior de seus corações, porque vivem fora da esfera da fé explícita, mas procuram Deus na verdade" (27).
O mundo, para Maritain, se distingue da Igreja numa distinção de separação; trata-se de uma dicotomia, um dualismo, na mesma linha dos dualismos que apontamos antes. O mundo, nessa teoria, possui um fim puramente natural; a Igreja, um fim sobrenatural; e nada tem este fim a ver com aquele. A união das duas ordens se faz nos corações. É pelos corações que as profundezas profanas do mundo são inspiradas evangelicamente. Quer dizer: o fim natural do mundo, permanecendo intrinsecamente natural, é sobre elevado pelos corações, ou - o que é a mesma coisa - pelas pessoas.
A Igreja fica longe do mundo, gravitando na órbita intangível dos princípios analógicos imutáveis. À guisa de satélite artificial da terra, emite a mensagem evangélica por um transmissor, e esta é captada de modo refratado na atmosfera do mundo, pelos corações humanos da cristandade profana. O mundo, nessa teoria, é apenas sobre elevado invisivelmente, em nada sendo modificado na sua estrutura profana.
Aqui aparece o conceito modernista da graça. Na sua estrutura social, como conjunto de indivíduos, o mundo é puramente natural, mas, na intimidade das pessoas, nos corações, ele é sobre elevado.
Sabemos que, para São Tomás, a graça (sobre natureza) está para a natureza assim como o ato está para a potência. Na doutrina tomista, chama-se ato a perfeição última de um ser. A graça é um ato sobrenatural que aperfeiçoa a natureza. Isto quer dizer que, na sociedade sobrenaturalizada pela graça, já não se pode distinguir um fim natural ao lado de um fim sobrenatural: a natureza sobrenaturalizada pela graça passa a ter um só fim, o sobrenatural, isto é, em toda esfera de atividade e costumes deve estar presente o espírito sobrenatural, à semelhança do católico militante que manifesta o estado de graça em seus pensamentos, palavras e obras.
Uma sociedade cristã só pode ser sacral, como o foi na Idade Média. A sobrenaturalização da sociedade tem que ser algo de atual, explícito, do contrário não há sobrenaturalização. Mas, isto significa, como já dissemos, que a sociedade sobrenaturalizada não possui um fim "puramente natural sobre elevado", mas passa a ter um fim sobrenatural. A Igreja na sociedade cristã, sociedade sacral, vive na sociedade, é visível, pois Ela é a origem da sobrenatureza que eleva a sociedade. Não existe, portanto, um fim profano cristão, como quer o Sr. Maritain. O conceito maritainista da graça é algo mágico, pois, segundo ele, a graça sobreleva a sociedade sem modificá-la em sua estrutura. Ora, a doutrina da distinção entre ato e potência não conhece isto: sendo o ato perfeição de ser, explicita uma realidade; há algo de novo e profundo quando algo se atualiza: a intenção de escrever o artigo é muito diferente do artigo escrito. Assim, pois, a sociedade sobrenaturalizada tem que ser algo profundamente distinto de uma sociedade profana.
É um absurdo conceber-se uma sociedade sobrenaturalizada que permanece com uma estrutura puramente profana. A sociedade profano-cristã do Sr. Jacques Maritain é uma contradição. Por aí vemos como esse escritor se encontra longe da boa linha tomista. Sua concepção da graça é de sabor modernista. E isso nos leva ao naturalismo apontado pelo Pe. A. Messineo. Maritain, identificando toda obra do espírito com obra inspirada pela graça, está fazendo da graça algo imanente à natureza espiritual criada, o que não passa de naturalismo. Em suma, podemos dizer que a doutrina maritainiana gravita em torno de uma psicose dualista consubstanciada nas oposições espírito-matéria, pessoa-indivíduo, mundo-Igreja, natureza-graça, onde encontramos uma concepção imanentista e naturalista da graça, conforme o modelo da heresia gnóstica e modernista.
(Atanásio Aubertin)

(1) Jacques Maritain - "On the Philosophy of History". Charles Scribner's Sons, New York, 1957.
(2) Padre A. Messineo, S.J. - "O Humanismo Integral", in CATOLICISMO, ns. 75 a 77, de 1957.
(3) Cunha Alvarenga - in CATOLICISMO, ns. 99 e 101, de 1959.
(4) "On the Philosophy of History", p. 38.
(5) Apoc. 4.
(6) Padre A. Messineo, S.J. - art. cit., in CATOLICISMO, no 75, de 1957.
(7) "On the Philosophy of History", p. 20.
(8) Op, cit., p. 21.
(9) Op. cit., p. 31.
(10) J. Maritain - "Man and the State". The University of Chicago Press, 1951, p. 159.
(11) "On the Philosophy of History", p. 10 e p. 105.
(12) Mt. 13.
(13) Apoc. 22, 11.
(14) 4 Reis 22, 11 a 13.
(15) J. Maritain - "La Personne et le Bien Commum". Desclée, 1947, p. 68.
(16) Cunha Alvarenga - "Jacob Boehme no Pensamento de Berdiaef e Maritain", in CATOLICISMO, no 101, de 1959.
(17) São Tomás de Aquino - S. T., I, q. 29.
(18) J. Maritain - "Du Régime Temporel et la Liberté". Desclée, 1933, p. 56.
(19) "La Personne et le Bien Commum", p. 27.
(20) Op. cit., p. 31.
(21) "On the Philosophy of History", pp. 46 e 47.
(22) Op. cit., p. 73.
(23) Op. cit., p. 71.
(24) São Tomás de Aquino - "Sobre o Reino", VIII, IX.
(25) "La Personne et le Bien Commum", p. 55.
(26) Padre A. Messineo, S.J. - CATOLICISMO, no 77, de 1957.
(27) "Man and the State", p. 151.
(28) "On the Philosophy of History", p. 128.
(29) São Tomás de Aquino - S. T., III, q. 8, a. 3.
(30) "On the Philosophy of History", p. 141.