Em 1957 saiu a lume um novo livro do Sr. Jacques
Maritain (1), livro esse que encerra um curso sobre filosofia da história dado
em seminários na Universidade norte-americana de Notre Dame.
Nesse trabalho, o autor procura formular sua
concepção da filosofia da história à luz de teses já conhecidas, que
encontramos no "Humanisme Integral", “Du Regime Temporel et la
Liberté”, "La Personne et le Bien Commun", "Christianisme et
Démocratie", "Man and the State".
Mas, "On the Philosophy of History" não
consiste somente em teses conhecidas. Maritain apresenta nele algo novo, que
ainda não tinha sido explicitado em suas obras anteriores, embora já se
encontrasse em germe na ambiguidade e obscuridade do pensamento desse pseudotomista.
Queremos no presente artigo focalizar a atenção sobre esse aspecto do livro,
que podemos resumir nos seguintes tópicos: a relação entre filosofia da
história e teologia, o conceito evolutivo da história, e a relação entre
natureza e graça.
Antes de entrarmos no assunto, cabe uma observação:
certas suspeitas do Pe. Messineo (2) assim como certas conclusões do Sr. Cunha
Alvarenga (3) parecem encontrar confirmação em "On the Philosophy of
History.". Podemos dizer que este livro explicita mais ainda a existência
de uma neurose dualista de sabor gnóstico perseguindo o pensamento maritainiano
e consubstanciada nas distinções indivíduo - pessoa, espírito - matéria,
cristandade-cristianismo, Igreja-Estado, graça-natureza, as quais possuem um
sentido bem diferente no ensino tradicional da Igreja; este livro parece
mostrar também que, na base dos erros de seu autor, existe uma concepção
modernista da ordem sobrenatural.
A) Uma distinção entre filosofia da história e
teologia da história que não pode subsistir.
Dentro do contexto deste artigo não seria cabível
uma análise crítica do conceito de filosofia da história de Maritain, já que,
para isso, teríamos que enveredar pelo plano puramente filosófico, alheio ao
escopo que temos em vista. A este respeito, apenas diremos que a formulação de
filosofia da história, feita pelo filósofo francês, não pode ser aceita sem
objeções do ponto de vista da teoria do conhecimento. O que nos interessa no
momento é a relação que Maritain estabelece entre filosofia da história e
teologia da história. Vejamos o que diz ele sobre esta distinção. Citemos o
seguinte trecho: "Existe uma teologia da história, que está centrada no
Reino de Deus e na história da salvação — uma teologia da história da salvação
— e que considera os dois desenvolvimentos, do mundo e da Igreja, mas do ponto
de vista do desenvolvimento da Igreja. E existe uma filosofia da história, que
está centrada no mundo e na história das civilizações, e que considera os dois
desenvolvimentos, da Igreja e do mundo, do ponto de vista do desenvolvimento do
mundo. Em outras palavras, a teologia da história está colocada no centro do
mistério da Igreja, enquanto considera a relação deste com o mundo; por outro
lado, a filosofia da história está colocada no centro do mistério do mundo,
enquanto considerado em relação com a Igreja, com o Reino de Deus no estado de
peregrinação" (4).
Esta distinção é estranha. Sabemos pela Fé que o
mistério do mundo se encontra nos planos de Deus realizados no Sacrifício do
Calvário, o que significa que o mistério do mundo está também no mistério da
Igreja; a história do mundo só tem sentido quando vista à luz da história da
Igreja. Quando o Apóstolo São João descreve o Cordeiro de Deus abrindo o livro
dos sete selos (5), ele nos mostra Jesus Cristo como Aquele que detém os
segredos da história, que faz executar os planos divinos na história a partir
do mistério do Calvário. Ora, como Jesus Cristo é a cabeça da Igreja, temos que
o mistério do mundo está no mistério da Igreja. Em outros termos: o mistério da
história do mundo e da Igreja é de caráter sobrenatural, e portanto só pode ser
estudado à luz da Fé. Quer dizer: uma verdadeira filosofia da história só pode
ser teologia da história.
A doutrina maritainista admite como legítima uma
análise profana da história da Igreja, consubstanciada numa distinção
especiosa. Isso se parece com a visualização modernista da história, condenada
por São Pio X na "Pascendi", segundo a qual existe uma diferença
entre uma Igreja da Fé e uma Igreja da história, um Cristo da Fé e um Cristo da
história. Já podemos ver como essa distinção se parece com a conhecida
distinção entre cristandade sacral e cristandade profana.
Santo Agostinho, em "A Cidade de Deus",
não estabelece distinção dessa ordem, e faz o estudo da história em função da
filosofia e da teologia simultaneamente, mostrando com isso que a história
possui um sentido último que é de ordem sobrenatural. Por conseguinte, não há
lugar para um estudo profano da história da Igreja.
Esta distinção maritainiana afigurar-se-á inocente
se considerarmos que, na prática, o autor de "On the Philosophy of
History" tem sempre em conta os dados da Revelação. Mas; acontece que essa
distinção, estabelecida no plano teórico, diz respeito a uma concepção das
relações entre ordem natural e sobrenatural que parece obedecer, em Maritain, a
um contexto de ideias não ortodoxo. É o que teremos oportunidade de ver mais
pormenorizadamente no correr deste artigo.
B) Conceito evolutivo de história, onde aparece a
dialética de Hegel.
O Pe. Messineo, analisando o estranho conceito
evolutivo de história do "Humanisme Integral", faz o seguinte
comentário: "E, no entanto, a filosofia de Maritain não se funda na
dialética de Hegel, de onde a dificuldade de enquadrar essas afirmações de
sabor dialético no seu sistema filosófico; nem acreditamos que seu historicismo
possa ser reduzido ao sistema idealista de Benedetto Croce, da síntese dos
contrários. Semelhanças externas, certamente, mas que fazem pensar" (8).
A perplexidade do ilustre Jesuíta é muito justa,
pois Maritain se apresenta como tomista e, ao mesmo tempo, desenvolve uma
teoria evolucionista da história com sabor hegeliano. Em "On the
Philosophy of History" o sabor é acrescido do rótulo respectivo. É o
próprio autor quem o exibe. O que parecia semelhança externa no "Humanisme
Integral" e outros livros, não o é nesta nova obra. Nela se faz uma
análise crítica do sistema hegeliano, em que corretamente se rejeita o
idealismo e o apriorismo da metafísica do pensador alemão. Um filósofo de
formação realista e católica poderia sem dificuldade aceitar essa crítica, se
ela não terminasse pela aceitação do próprio mecanismo da dialética da síntese
dos contrários. Deixemos Maritain falar: "Havia em Hegel, como em todo
grande filósofo, uma intuição básica que diz respeito à experiência, à
realidade, e não simplesmente aos entia
rationis ou entidades de sua dialética feitas pela razão. E esta intuição
básica tem sido descrita como a intuição da mobilidade e inquietação que são
essenciais para a vida, e especialmente para o ser do homem, que nunca é o que
ele é, e é sempre o que ele não é. Noutros termos, poderíamos dizer que é a
intuição da realidade como história, isto é, como mobilidade, como movimento,
como mudança, mudança perpétua" (7).
Parece claro: a metafísica idealista de Hegel
("as entidades de sua dialética feitas pela razão") é rejeitada, mas
subsiste uma intuição básica, que é a própria dialética da síntese dos
contrários ("intuição da realidade como mudança perpétua"). Mais
adiante, o autor dá os ingredientes que completam o rótulo. Vejamos como esse
pseudotomista ingere a pílula da dialética hegeliana. Maritain faz passar a
Ideia de Hegel pelo filtro de sua filosofia-alquimia, de onde extrai a tal
intuição básica com o seguinte raciocino: "Estas ideias históricas -
formas imanentes no tempo, por assim dizer - pressupõem a natureza, o ser das
coisas e o ser do homem, não têm nada a ver com a Ideia hegeliana e os
processos autogeradores da lógica crítica de Hegel. Além do mais, essas ideias
históricas estão longe de constituir toda a história. Por admissão, se
considerarmos a maneira pela qual essas ideias históricas atuam na história,
pode-se dizer que cada uma delas, cada uma dessas formas imanentes no tempo,
pode atingir seu acabamento final no tempo só pela provocação de seu oposto e
negando-se a si mesma. Mas por que é assim? É porque o seu próprio triunfo
exaure as potencialidades que a incoam, e ao mesmo tempo desmascara e provoca
no abismo do real as potencialidades opostas. Aqui está uma interpretação que
nada tem a ver com a alienação e integração dialética, mas que mostra, segundo
me parece, que a história ofereceu a Hegel um tipo de material aparentado com
sua filosofia geral" (8).
Em Hegel, a realidade se identifica com o vir-a-ser
de uma Ideia absoluta que absorve toda a realidade numa espécie de panteísmo;
essa Ideia, semelhante ao "todo transcendente" dos sistemas
gnósticos, é intrinsecamente instável, estando sujeita a um evolucionismo que
obedece ao seguinte processo: a Ideia se nega provocando seu oposto, que por
outro lado, num momento seguinte, constitui uma síntese com a Ideia inicial;
esta síntese é uma nova Ideia, que passa a se negar de novo, provocando uma
nova Ideia-síntese, que vem a sofrer o processo novamente. Esta é a célebre
dialética hegeliana, segundo a qual procuram alguns interpretar a evolução da
história.
Conforme este esquema, como podemos ver, a história
progride de modo linear, sem possibilidade de restaurações de estados e
culturas passadas. Maritain rejeita a Ideia absoluta, mas aceita a dialética.
Isto pode muito bem explicar seu conceito progressivo da história, contido na
celebre lei da tomada de consciência.
A coletividade possui certas ideias, "formas
imanentes ao tempo"; pela tomada de consciência, as potencialidades dessas
formas são esgotadas, gerando formas opostas, as quais, por seu lado, contêm
algo de positivo (a síntese) que perdura até serem esgotadas suas
possibilidades, repetindo-se o processo dialético de modo ininterrupto. Mas não
é isto que está contido na teoria maritainista da formação de uma cristandade
profana? Vejamos. A cristandade sacral é constituída por formas cujas
possibilidades vão-se esgotando com o tempo pela tomada de consciência, que vai
gerando formas opostas, consubstanciando o espírito profano. Em outros termos,
a sociedade cristã esgota suas energias gerando sua própria negação, que é uma
sociedade profana. Mas a negação contém algo de positivo, resultado da refração
das formas contidas na sociedade cristã; de onde a constituição da síntese:
sociedade cristã-profana. A cristandade sacral da Idade Média negou-se pelo
esgotamento de suas energias, gerando o espírito profano, que veio constituir
novas formas de potencialidades, ou seja, a cristandade profana.
Este livro nos tira da perplexidade em que nos
induzia o "Humanismo Integral", e nos dá plena certeza de que seu
autor utiliza a dialética de Hegel. Maritain, filosofo tomista?
C) A razão apresentada como de natureza progressiva.
Um trecho curioso do Sr. Maritain.
Mencionamos, de início, invocando as conclusões do
Sr. Cunha, Alvarenga, que o sistema maritainiano é de fundo gnóstico, o que
está consubstanciado na dialética hegeliana utilizada por Maritain. Este
último, quando critica Hegel, faz uma censura ao gnosticismo do filósofo
alemão, o que não deixa de ser curioso. Citemo-lo: "O que ele (o
historiador) repele na realidade não é a genuína filosofia da história, mas o
gnosticismo da história — aquele gnosticismo da história levado por Hegel a
supremas alturas metafísicas, mas que pode ser encontrado também, em outro
nível bem diferente, num sistema tão completamente fascinado pelas ciências positivas
e tão decididamente antimetafísico, como o sistema de Comte.
"Filosofia espúria da história, eis, pois, que
é o gnosticismo da história, no sentido mais geral desta expressão, e na medida
em que ele é caracterizado pelos quatro pecados capitais que foram mencionados
logo atrás" (9).
Ora, dado que a dialética hegeliana, como tal, não
está incluída nesses quatro "pecados capitais" de Henri Marrou, o
sistema maritainiano não seria gnóstico. Mas, este texto que transcrevemos não
visaria apenas a salvar as aparências?
É pela adesão à dialética hegeliana que o Sr.
Jacques Maritain, este "profeta" de tempos tenebrosos, nega toda e
qualquer volta da civilização a uma forma tradicional desejada pela Igreja e
que teve realização das mais perfeitas na cristandade medieval. Numa de suas
obras, afirma ele categoricamente: "Eles (cristãos hegelianos ou
maritainianos) sabem que uma civilização de inspiração cristã, se e quando se
desenvolve na história, de nenhum modo retornará à Idade Média, mas deverá ser
uma tentativa tipicamente diferente, de fazer o fermento do Evangelho levedar
as profundezas da existência temporal" (10). Claro. Pela dialética da
síntese dos contrários, a história é progressiva, desenvolve-se de modo linear,
não podendo haver restaurações, portanto.
Como consequência da aplicação da dialética de
Hegel à história, a razão e a moral devem ser vistas como em contínuo
progresso. Isto se encontra no "Humanismo Integral" e é corretamente
posto em foco pelo Pe. Messineo. Lemos em "On the Philosophy of
History": "A razão é por si mesma essencialmente progressiva". E
mais adiante: "Em outras palavras, nosso conhecimento das leis morais é
progressivo na natureza". E ainda: "Penso que este progresso da
consciência moral quanto a seu conhecimento explícito da lei natural é um dos
menos questionáveis exemplos do progresso da humanidade. Permitam-me frisar que
não estou apontando para nenhum progresso humano no comportamento moral...
Estou apontando para, um progresso da consciência moral como conhecimento dos
preceitos particulares da lei natural" (11). Ora, sabemos que nem mesmo o
conhecimento da lei moral é progressivo, pois conhecer a lei moral é
reconhecê-la como lei normativa que visa o bem do homem, e nisto, segundo o
testemunho da história, não há progresso linear. É o que se acha contido no
juízo de Pio XII, de que o pecado do mundo moderno está em ter perdido a
consciência do pecado. Vale dizer que houve uma decadência no conhecimento da
lei moral nos últimos tempos, pois o pecado embota a inteligência a ponto de
ela não compreender o sentido da lei moral. Mas o Papa desconhecia as luminosas
leis de Maritain, vivificadas pela filosofia de Hegel. Poder-se-ia objetar:
Maritain fala de uma lei do crescimento do bem e do mal na história, a qual ele
fundamenta numa parábola evangélica (12), e que parece também estar contida na
seguinte passagem do Novo Testamento: "Aquele que fere, deixai-o ferir
ainda; o que é impuro, que seja mais impuro ainda; o que é justo, que se
justifique mais ainda; e o que é santo, que se justifique ainda mais “(13). De
acordo com este versículo, o mal, assim como a santidade, cresce até o fim dos
tempos; isto não representa a lei do crescimento linear do bem e do mal? Não, e
veremos porque.
Em primeiro lugar, o crescimento da santidade na
história não é sinônimo do crescimento em santidade da coletividade: observemos
que o texto inspirado se refere a indivíduos humanos. A sociedade pode involuir
no conhecimento e na prática das leis morais, enquanto um número pequeno de
homens se santifica mais e mais através dos tempos. Aliás, a história da Igreja
mostra como a Providência suscita Santos de grande estatura em épocas de grande
iniquidade. São Luís Grignion de Montfort afirma que os Santos dos últimos
tempos - época da consumação da iniquidade - serão mais perfeitos que os dos
primeiros séculos. Ora, Maritain concebe o crescimento do bem na história como
próprio à sociedade toda e contido no mesmo crescimento do mal, pois, de acordo
com a dialética, a tese carrega a antítese. Assim, por exemplo, os princípios
da Revolução Francesa são vistos como um bem misturado com seu oposto,
representado pelas violências contra a Igreja.
Além do mais, o Sr. Jacques Maritain concebe a
razão humana como essencialmente progressiva; ora, sabemos pela Fé que, devido
ao pecado original, ela tende, sem a ajuda da graça, mais ao erro e à decadência.
A história dá testemunho em contrário a essa lei do crescimento necessário no
conhecimento das leis morais. A história de Israel, por exemplo: o Rei Josias,
tendo descoberto o Deuteronômio, até então escondido e esquecido por várias
gerações de seus antecessores, rasgou as vestes para exprimir sua dor por ver
quanto se tinham afastado da lei divina esses príncipes e o povo (14).
Observemos o seguinte: este poder progressivo da
razão humana, centrado na dialética hegeliana, parece possuir uma relação de
concordância com a teoria personalista de Maritain. Pois sabemos que, segundo
ele, a pessoa, polo espiritual, tem um quê de sagrado; "as pessoas
sobrepassam a ordem social e são diretamente ordenadas ao Todo
transcendente" (15). Quer dizer: a razão humana, pertencendo à pessoa, só
pode progredir, pois a pessoa tende diretamente para o Todo transcendente.
Assim, a lei da evolução progressiva da história está em adequação com a
sacralidade gnóstica da pessoa na concepção maritainista.
Vejamos agora mais alguma coisa sobre o
personalismo e o espiritualismo deste pseudo tomista.
D) A dicotomia espírito-matéria. A pessoa pertenceria
à igreja pneumática.
O Sr. Cunha Alvarenga, num de seus artigos em
CATOLICISMO (16), mostrou que a distinção maritainiana indivíduo-pessoa possui
uma estrutura filosófica platônica, e não tomista. Propomo-nos apontar como
"On, the Philosophy of History" traz novos elementos para reforçar
tal conclusão.
Segundo Maritain, os conceitos de indivíduo e
pessoa, contrariamente ao que ensina São Tomás de Aquino (17), são
"aspectos” (18) do ser humano, dois "polos” (19): o indivíduo é o
polo material, que se encontra em tensão com a pessoa, polo espiritual. Neste
ponto, queremos observar que este dualismo indivíduo-pessoa também apresenta
parentesco com a dialética hegeliana. Para Hegel, a evolução da história é
fruto da oposição entre a Ideia e sua negação; entre tese e antítese. Vale
dizer: a tensão entre tese e antítese gera a evolução histórica. Ora, o
escritor francês nos fala da tensão entre indivíduo e pessoa, onde o indivíduo
é a razão de ser do mal, e a pessoa é o polo espiritual, "princípio de
unidade criadora de independência e liberdade" (20), razão de ser do bem
na sociedade. Assim, por exemplo, os princípios do igualitarismo da Revolução
Francesa são um valor positivo, porque frutos do espírito, da tomada de
consciência da pessoa, como já apontamos acima. A propósito de sua lei do
crescimento do bem e do mal, estruturada sobre a dialética dos contrários, o
autor de "On the Philosophy of History" se refere a essa tensão entre
a energia criadora do espírito e o princípio de passividade da matéria, com as
seguintes palavras: "E devemos dizer, do ponto de vista filosófico, que o
movimento de progresso das sociedades no tempo depende desta lei do duplo
movimento - que pode ser chamada, neste caso, lei de degradação por um lado, e
lei de revitalização, por outro, da energia da história, ou da massa da
atividade humana da qual depende o movimento da história. Enquanto o desgaste
do tempo e a passividade da matéria naturalmente dissipam e degradam as coisas
deste mundo e a energia da história, as forças criadoras que são próprias do
espírito e da liberdade e que são sua prova, e que normalmente têm seu ponto de
aplicação no esforço de poucos, constantemente revitalizam a qualidade desta
energia". A seguir, diz: "Ela (a vida das sociedades humanas) avança
e progride graças à vitalização ou, superelevação da energia da história
emergindo do espírito e da liberdade humana. Mas, ao mesmo tempo, esta mesma
energia da história é degradada e dissipada por motivo da passividade da
matéria" (21).
Este trecho do livro que estamos considerando
relaciona a tensão dialética da tese-antítese com a tensão espírito-matéria.
Como a tensão espírito-matéria equivale à tensão indivíduo-pessoa, concluímos
que há interdependência lógica entre a tensão indivíduo-pessoa e a tensão
dialética tese-antítese. Vemos, assim, como a teoria do dualismo
indivíduo-pessoa se encaixa de modo perfeito na "intuição básica" (7)
de Hegel. Essa tensão entre espírito e matéria é de cunho platônico, pois, para
Platão, espírito e matéria encontram-se numa oposição de incompatibilidade; tal
oposição é típica na luta dialética entre tese e antítese e na concepção
maritainiana da distinção entre espírito e matéria.
Acentuemos também que nos trechos citados o autor
faz da matéria o princípio do mal. Como explicaria o pecado dos anjos? Ou será
que ele admitiria nos anjos?
Isso tudo gera uma falsa espiritualidade. Vejamos o
que Maritain entende por espiritualidade. Mostra-se pródigo em elogios ao
Maatma Gandhi em seus livros "Du Régime Temporel et la Liberté",
"Man and the State" e "On the Philosophy of History". Nesta
última obra encontramos a seguinte referência àquele pagão: "Gostaria de frisar
que Gandhi não foi só uma excepcional figura de profeta. Ele deve ser
considerado como o fundador de uma escola de pensamento" (22). Ora, quem
foi o Maatma? Um herdeiro nada original do pensamento brâmane. Toda a sua
teoria da não violência é tão velha quanto a Índia, pois está baseada na
antiquíssima doutrina brâmane de que a matéria é má, a individualidade é má, o
agir segundo a razão é mau, e o homem tem que se libertar disto pela
passividade absoluta, a fim de poder imergir no Todo panteísta. Para o
bramanismo, qualquer disputa, polêmica, luta armada, é um mal, pois é ação que
deriva da individualidade, a qual deve ser destruída.
As simpatias de Maritain por um homem cujo
"background" moral e intelectual é esse, são muito sintomáticas.
Citemos uma passagem do livro que estamos focalizando. Lê-se ali, a respeito da
essência da vida espiritual: "A pura essência do espiritual deve ser
achada na atividade totalmente imanente, na contemplação, cuja eficácia
peculiar em tocar o coração de Deus não perturba nenhum átomo na terra. Quanto
mais perto se chega da pura essência do espiritual, tanto mais leves, menos
palpáveis, e mais espontaneamente agudos se tornam os meios temporais
empregados em seu serviço. E essa é a condição de sua eficácia" (21). Não
é propriamente isto que a Santa Igreja considera como vida espiritual.
"Atividade totalmente imanente" e que "não perturba nenhum átomo
da terra" não é, em si, o que constitui a vida espiritual; isto é mais
imaterialismo brâmane do que doutrina católica.
São Tomás de Aquino ensina que o prêmio eterno dos
Príncipes santos é dos maiores, porque o governo dos outros é mais difícil do
que o difícil governo de si mesmo (24). Ora, isto significa que a temporal e
materialmente pesada atividade de um Rei é atividade espiritual. A doutrina
católica não identifica espiritualidade com imaterialidade pura. A defesa da
Igreja por meio da espada é atividade espiritual sob certo título, assim como a
atividade contemplativa o é sob outro. O espiritualismo maritainista apresenta
sabor brâmane. Não é, pois, à toa que Gandhi é tão cultuado por Maritain e seus
seguidores.
Esta fábula sobre espiritualidade contém, em germe
um erro teológico. A tensão indivíduo-pessoa já sugere que o Sr. Jacques
Maritain possui um conceito errado da ordem da graça. Vejamos que
esclarecimentos nos pode fornecer ainda o "On the Philosophy of
History".
Parece que seu autor identifica o dualismo
natureza-graça com o dualismo temporal-espiritual. O fato de ele considerar a
heresia igualitária da Revolução Francesa, "obra do espírito", como
de "inspiração cristã", nos está sugerindo isto; mas deixemos tal
assunto para a última parte deste artigo, e citemos o seguinte texto: "O
teólogo da história observará que através do tempo, e apesar do impulso
permanente destas sociedades (as igrejas heréticas e cismáticas) para a
separação, em número sempre maior os que nascem em tais comunidades religiosas
se tornam, por motivo de sua boa fé, isentos do pecado do cisma e da heresia,
de modo que essas comunidades não deveriam ser chamadas de heréticas ou
cismáticas, mas simplesmente dissidentes" (25). Uma coisa é questão
relativa à boa fé, a qual se refere à vontade, outra é questão relativa ao
cisma e à heresia, que antes de tudo diz respeito à ordem doutrinaria. Sabemos que
um luterano não deixa de ser herege pelo simples fato de estar de boa-fé.
Aquela afirmação absurda de Maritain tem uma explicação: os indivíduos destas
religiões falsas não são católicos, mas a pessoa, ah!, pelo fato de estar
"diretamente ordenada à beatitude" (25) pertence necessariamente à
Igreja. Isso tudo não sugere que o indivíduo, não pertencendo à Igreja visível,
se encontra ligado a uma pessoa necessariamente pertinente a uma Igreja
pneumática (26)?
E) A Concepção Maritainiana da Ordem Sobrenatural. Esclarecimento
do novo livro: modernismo.
O Pe. Messineo, na crítica que dirige ao
"Humanisme Intégral" (26), mostra que seu autor faz uma distinção
entre Religião e civilização de que resulta ficar a primeira localizada fora do
tempo e do espaço. Trata-se simplesmente de uma dicotomia idêntica à que
Maritain estabelece entre indivíduo e pessoa, entre espírito e matéria. A
distinção é uma separação. Este "leitmotiv" da dicotomia, da tensão
entre contrários, se manifesta em todo o pensamento desse pseudo tomista, e
vamos encontrá-lo sob a forma Igreja-corpo político em "Man and the
State". Neste livro vemos esta dicotomia sugerindo a idéia da Igreja
pneumática, a qual se apresenta mais claramente em "On the Philosophy of
History". Em "Man and the State" se sustenta que o corpo
político é uma entidade temporal visível, e a Igreja é atemporal e invisível no
"mistério da graça e caridade vivificando as almas humanas, mesmo aquelas
que pertencem ao corpo da Igreja sem o saber e somente pelo movimento interior
de seus corações, porque vivem fora da esfera da fé explícita, mas procuram
Deus na verdade" (27).
O mundo, para Maritain, se distingue da Igreja numa
distinção de separação; trata-se de uma dicotomia, um dualismo, na mesma linha
dos dualismos que apontamos antes. O mundo, nessa teoria, possui um fim
puramente natural; a Igreja, um fim sobrenatural; e nada tem este fim a ver com
aquele. A união das duas ordens se faz nos corações. É pelos corações que as
profundezas profanas do mundo são inspiradas evangelicamente. Quer dizer: o fim
natural do mundo, permanecendo intrinsecamente natural, é sobre elevado pelos
corações, ou - o que é a mesma coisa - pelas pessoas.
A Igreja fica longe do mundo, gravitando na órbita
intangível dos princípios analógicos imutáveis. À guisa de satélite artificial
da terra, emite a mensagem evangélica por um transmissor, e esta é captada de
modo refratado na atmosfera do mundo, pelos corações humanos da cristandade
profana. O mundo, nessa teoria, é apenas sobre elevado invisivelmente, em nada
sendo modificado na sua estrutura profana.
Aqui aparece o conceito modernista da graça. Na sua
estrutura social, como conjunto de indivíduos, o mundo é puramente natural,
mas, na intimidade das pessoas, nos corações, ele é sobre elevado.
Sabemos que, para São Tomás, a graça (sobre
natureza) está para a natureza assim como o ato está para a potência. Na
doutrina tomista, chama-se ato a perfeição última de um ser. A graça é um ato
sobrenatural que aperfeiçoa a natureza. Isto quer dizer que, na sociedade
sobrenaturalizada pela graça, já não se pode distinguir um fim natural ao lado
de um fim sobrenatural: a natureza sobrenaturalizada pela graça passa a ter um
só fim, o sobrenatural, isto é, em toda esfera de atividade e costumes deve
estar presente o espírito sobrenatural, à semelhança do católico militante que
manifesta o estado de graça em seus pensamentos, palavras e obras.
Uma sociedade cristã só pode ser sacral, como o foi
na Idade Média. A sobrenaturalização da sociedade tem que ser algo de atual,
explícito, do contrário não há sobrenaturalização. Mas, isto significa, como já
dissemos, que a sociedade sobrenaturalizada não possui um fim "puramente
natural sobre elevado", mas passa a ter um fim sobrenatural. A Igreja na
sociedade cristã, sociedade sacral, vive na sociedade, é visível, pois Ela é a
origem da sobrenatureza que eleva a sociedade. Não existe, portanto, um fim
profano cristão, como quer o Sr. Maritain. O conceito maritainista da graça é
algo mágico, pois, segundo ele, a graça sobreleva a sociedade sem modificá-la
em sua estrutura. Ora, a doutrina da distinção entre ato e potência não conhece
isto: sendo o ato perfeição de ser, explicita uma realidade; há algo de novo e
profundo quando algo se atualiza: a intenção de escrever o artigo é muito
diferente do artigo escrito. Assim, pois, a sociedade sobrenaturalizada tem que
ser algo profundamente distinto de uma sociedade profana.
É um absurdo conceber-se uma sociedade
sobrenaturalizada que permanece com uma estrutura puramente profana. A sociedade
profano-cristã do Sr. Jacques Maritain é uma contradição. Por aí vemos como
esse escritor se encontra longe da boa linha tomista. Sua concepção da graça é
de sabor modernista. E isso nos leva ao naturalismo apontado pelo Pe. A.
Messineo. Maritain, identificando toda obra do espírito com obra inspirada pela
graça, está fazendo da graça algo imanente à natureza espiritual criada, o que
não passa de naturalismo. Em suma, podemos dizer que a doutrina maritainiana
gravita em torno de uma psicose dualista consubstanciada nas oposições
espírito-matéria, pessoa-indivíduo, mundo-Igreja, natureza-graça, onde
encontramos uma concepção imanentista e naturalista da graça, conforme o modelo
da heresia gnóstica e modernista.
(Atanásio Aubertin)
(1) Jacques Maritain -
"On the Philosophy of History". Charles Scribner's Sons, New York,
1957.
(2) Padre A. Messineo, S.J. - "O Humanismo
Integral", in CATOLICISMO, ns. 75 a 77, de 1957.
(3) Cunha Alvarenga - in CATOLICISMO, ns. 99 e 101,
de 1959.
(4) "On the Philosophy
of History", p. 38.
(5) Apoc. 4.
(6) Padre A. Messineo, S.J. - art. cit., in
CATOLICISMO, no 75, de 1957.
(7) "On the Philosophy
of History", p. 20.
(8) Op, cit., p. 21.
(9) Op. cit., p. 31.
(10) J. Maritain -
"Man and the State". The University of Chicago Press, 1951, p. 159.
(11) "On the
Philosophy of History", p. 10 e p. 105.
(12) Mt. 13.
(13) Apoc. 22, 11.
(14) 4 Reis 22, 11 a 13.
(15) J. Maritain - "La
Personne et le Bien Commum". Desclée, 1947, p. 68.
(16) Cunha Alvarenga - "Jacob Boehme no
Pensamento de Berdiaef e Maritain", in CATOLICISMO, no 101, de 1959.
(17) São Tomás de Aquino - S. T., I, q. 29.
(18) J. Maritain - "Du
Régime Temporel et la Liberté". Desclée, 1933, p. 56.
(19) "La Personne et le
Bien Commum", p. 27.
(20) Op. cit., p. 31.
(21) "On the
Philosophy of History", pp. 46 e 47.
(22) Op. cit., p. 73.
(23) Op. cit., p. 71.
(24) São Tomás de Aquino - "Sobre o
Reino", VIII, IX.
(25) "La Personne et le
Bien Commum", p. 55.
(26) Padre A. Messineo, S.J. - CATOLICISMO, no 77,
de 1957.
(27) "Man and the
State", p. 151.
(28) "On the
Philosophy of History", p. 128.
(29) São Tomás de Aquino - S. T., III, q. 8, a. 3.
(30) "On the
Philosophy of History", p. 141.