domingo, 19 de agosto de 2018

374ª Nota - Sedevacantismo: uma verdade legitimamente aplicada



___Como podemos defender a tradição católica se rechaçamos o ensinamento antigo da Igreja sobre quem está dentro ou fora da Igreja Católica?  Os hereges públicos estão fora da Igreja e não podem ocupar um cargo eclesiástico. Infelizmente esta realidade é negada pelos tradicionalistas de muitos matizes. Deixemos de imitar os galicanos e aceitemos o sedevacantismo, que é conclusão teológica e solução real para a horrível situação em que nos encontramos.

___Santo Roberto Belarmino, doutor da Igreja, ensina mais explicitamente (De Romano Pontifice, II, cap. XXX) que uma heresia por sua própria natureza (ex natura haeresis), separa o herege da Igreja, e causa a perda imediata do cargo eclesiástico: “Os Santos Padres ensinaram com consenso que não somente os hereges estão fora da Igreja, mas também carecem de toda jurisdição e dignidade eclesiástica ipso facto”. Os tradicionalistas e conservadores desesperadamente interpretam que os Padres ensinam que o herege está se separando da Igreja e a perda subsequente de qualquer cargo e jurisdição é o resultado de um juízo de um tribunal eclesiástico ou de uma censura eclesiástica. Santo Belarmino, em sua refutação da quarta opinião, destrói completamente esse argumento: “Tampouco é a resposta que alguns fazem valer, dizendo que os Santos Padres falam segundo as leis antigas, porém, agora, a partir do decreto do Concílio de Constança, não perdem a jurisdição, a menos que seja excomungado (nisi nominatim excommunicatos et percussores clericorum). Eu digo que isto não serve para nada. Os padres, quando dizem que os hereges perdem a jurisdição, não alegam nenhuma lei humana que talvez não existia até então; senão que argumentam por meio da natureza da heresia. Ademais, o Concílio de Constança não fala senão dos excomungados, a saber, daqueles que perdem jurisdição como resultado de um juízo da Igreja. Sem embargo, os hereges estão fora da Igreja, inclusive antes da excomunhão, e estão privados de toda a jurisdição, já que são condenados por seu próprio juízo, assim como o Apóstolo ensina a Tito, isto é, estão separados do corpo da Igreja sem excomunhão, como o expressa São Jerônimo”. Portanto, Santo Roberto Belarmino demonstra o ensinamento das Escrituras, interpretada unanimemente pelos Padres, que os hereges estão fora da Igreja e perdem toda a jurisdição por culpa deles mesmos antes de que a Igreja faça um juízo.

___Também se mostra com a razão, pelo mesmo significado das palavras cisma, heresia, apostasia suapte natura (por sua natureza) em Mystici Corporis e ex natura haeresis em De Romano Pontifice, que se fala da heresia em si mesma, em sua mesma natureza, e não da heresia considerada como uma violação da lei eclesiástica; porque uma coisa é que se considere em sua natureza, ou seja, considerada formalmente como um principio motus en eo quod est. Santo Tomás de Aquino se refere a ela como um princípio de movimento que é intrínseco em si mesmo, e pelo qual separa o herege da Igreja, e não por nenhum princípio extrínseco como a força de um lei positiva humana.

___Portanto, é pela fé que primeiro se une a Deus; e pela profissão externa da fé, e o sacramento da fé, alguém entra na Igreja, porque  pertence propriamente à natureza da fé o unir-se a Deus e a sua Igreja; e é pela disposição contrária do pecado de infidelidade – de heresia ou apostasia –, quando alguém, com um ato externo, rechaça a fé e abandona a Igreja. Tal é o movimento próprio de cada natureza, como o explica Santo Tomás, que o movimento natural do fogo é para cima, e da terra para baixo; assim também o movimento da fé nos leva a unir-se à Igreja, e a heresia, por sua natureza, nos separa dela.

___Belarmino explica que os hereges ocultos estão unidos e são membros somente por uma união externa, porém um herege manifesto não é membro de forma alguma da Igreja, nem pela alma nem pelo corpo, nem pela união interna e externa (haereticus manifestus, nullo modo est membrum Ecclesiae, id est, neque animo, neque corpore, sive neque unione interna, neque external).
 
___Aplicando esta doutrina ao caso hipotético de um Papa manifestamente herético, Belarmino explica como a fé é simplesmente uma disposição necessária para que alguém seja Papa; e tendo sido eliminada a fé, por sua disposição contrária, que é a heresia, o Papa imediatamente deixaria de ser Papa, com a disposição necessária para que a forma do papado não possa ser preservada (ista dispositione sublata por contrariam quae est heresis, mox papa desinit esse; neque enim potest forma conservari sine necessariis dispositionibus). Portanto, sobre esta base teológica, Belarmino considera que a quinta opinião é a verdadeira opinião, e de acordo com ela a explicação dele deve ser interpretada. [Um Papa não pode ser deposto por ninguém a não ser por ele mesmo, ou seja, através de seu próprio ato de heresia pública]. Logo, quando Belarmino afirma que um Papa manifestamente herege pode ser deposto, claramente seu significado é que ele não se refere a um Papa enquanto esteja no cargo, senão a alguém que já tenha deixado de ser Papa por si mesmo, ou, como o Papa Gregório XVI o expressou do reclamante Pedro de Luna (Benedito XIII), se alguma vez tivesse sido Papa, já teria caído (decaduto) do trono papal por ter atacado o dogma “unam sanctam”.

___A correta explicação da doutrina de Santo Roberto Belarmino, que expõe o absurdo da interpretação dos atuais tradicionalistas de plantão desta mesma doutrina, é explicada pelos eminentíssimos jesuítas Franz Xavier Werns e Pedro Vital em Jus Canonicum (1938), cap. VII: “453. Por heresia notória e abertamente conhecida, o Romano Pontífice, caso caia nela, por este mesmo fato, inclusive antes de qualquer sentença declaratória da Igreja, é privado de seu poder de jurisdição (Per haeresim notoriam et palam divulgatam R. Pontifex si in illam incidat, ipso facto etiam ante omnem sententiam declaratoriam Ecclesiae sua potestate iurisdictionis privatus existit)". 

___O termo notória na expressão tem o significado comum da palavra, equivalendo a pública, manifesta, evidente e conhecida, e não segundo a definição canônica estrita do termo tal como se define no direito penal, já que alguns autores o interpretam arbitrariamente, aproveitando a palavra notória, e assumindo-a acriticamente para denotar um delito canônico que um juiz pronunciou por sentença judicial (algo que é impossível no caso de um Papa manifestamente herético); ou que denota uma notoriedade que deveria ajustar-se a critérios mais estritos que os estabelecidos pelo Código de Direito Canônico de 1917 sobre os requisitos canônicos para que um delito seja considerado notório pelos fatos no direito penal. Assim, é manifestamente evidente que Werns e Vidal não aplicam o termo em seu sentido estritamente canônico, senão em seu sentido ordinário, porque os autores não expõe uma menção do direito canônico, senão de teologia especulativa, a saber, a perda do cargo ex haeresis natura, como é manifestamente evidente no contexto. Em teologia moral, enquanto a imputabilidade moral do ato, a definição de heresia notória no caso de um delito de heresia como se entende em sua conotação penal-canônica de notoriedade de fato; a definição moral-teológica se distingue formalmente da definição penal-canônica pelo fato de que não é uma questão de lei determinada por legalidades, senão que está determinada pelo objeto moral do ato e segundo a natureza daquilo que moralmente constitui o pecado de heresia como um ato notório. Neste sentido moral-teológico, que um ato de heresia formal pode considerar-se notório quando o ato de negação ou dúvida obstinada de uma verdade revelada de fé é público, e se refere a: 1. Uma verdade revelada que pertence à Lei Natural; 2. Um dogma universalmente conhecido que nenhum católico ignora; 3. Ou se o herege reconhece explicitamente que sua crença é contrária ao dogma; 4. Ou se a dúvida ou negação persiste depois da correção.

___A quarta opinião, com Suárez, Caetano e outros, sustentam que um Papa não está automaticamente deposto nem sequer por heresia manifesta, senão que pode e deve ser deposto somente por uma sentença declaratória do delito. Esta opinião, segundo Belarmino, não pode ser defendida.”  Por desgraça, esta posição que Belarmino rejeita é a defendida pelos tradicionalistas de vários matizes.

___Finalmente, a quinta opinião, a do próprio Santo, que é a melhor provada e a mais comum. Porquanto aquele que já não é membro do corpo da Igreja, isto é, da Igreja como sociedade visível, não pode ser a cabeça da Igreja Universal. Um Papa que caiu na heresia pública cessaria por esse mesmo fato de ser membro da Igreja. Logo, ele também cessaria por esse mesmo motivo de ser o chefe da Igreja.

___ Assim, os grandes canonistas jesuítas da Universidade Gregoriana explicam que a Opinião 5 de Santo Roberto Belarmino está baseada na doutrina do Papa Inocêncio III, o qual disse no Sermo II: “In tantum enim fides mihi necessaria est ut cum de caeteris peccatis solum Deum judicem habeam, propter solum peccatum quod in fide commititur possem ab Ecclesia judicari. Nam qui non credit, iam iudicatus est.  (Joh.318)”.