Ao empreender a tarefa de traçar as origens dos
desvios doutrinários e disciplinares da "democracia cristã", queremos
deixar bem demonstrado o que dissemos em artigo anterior (1), isto é, que tal
movimento político-social-econômico nada tem de comum com o que aquela
expressão designa nos documentos pontifícios.
Com efeito, o Santo Padre Leão XIII, na Encíclica
"Graves de communi" sobre a democracia cristã (18 de janeiro de
1901), mostrou o verdadeiro sentido em que se devem usar essas palavras,
alertando os fiéis contra os abusos que então já se registravam a respeito.
Assim, diz ele, "não há dúvida alguma sobre o que pretende a democracia social
e sobre o que deva anelar a democracia cristã. Porque a primeira em muitos
chega a tal grau de malícia, que nada admite fora do natural, busca
exclusivamente os bens corpóreos e externos, pondo a felicidade humana em sua
aquisição e gozo. Daí seu desejo de que a autoridade resida na plebe, para que,
suprimidas as classes sociais e nivelados os cidadãos, se estabeleça a
igualdade de bens; como consequência se aboliria o direito de propriedade e a
fortuna dos particulares, assim como os meios de vida passariam a ser
comuns". A democracia cristã, "na presente matéria, deve entender-se
de modo que, deixado de lado todo conceito político, unicamente signifique a
própria ação benéfica cristã em favor do povo" (ibid.). Pelo que, "a
mente e ação dos católicos, ao promover o bem dos proletários, de modo algum há
de tender a desejar e tratar de introduzir um regime social com preferência a
outro" (ibid.). Não deve, pois, a democracia cristã ser exclusivamente
populista nem significar desprezo da autoridade. E a verdadeira democracia
cristã é própria da Igreja, achando-se, portanto, em campo oposto ao laicismo
da democracia revolucionaria.
Onde entram o liberalismo e o igualitarismo
Na verdade, na quadra em que surgiu a Encíclica
"Graves de communi" o trabalho insidioso do liberalismo e do
socialismo nas hostes católicas já apresentava amargos frutos. O liberalismo e
o igualitarismo pregados pelo regime democrático emanado da Revolução Francesa
são filhos da negação do pecado original. Revolução e Cristianismo se opõem "per
diametrum". Os discípulos de Rousseau apregoavam que os homens nascem
bons, iguais e livres, mas que a sociedade os perverte, degrada e escraviza.
Comentando a máxima com que Rousseau começa seu "Contrato Social":
"O homem nasce livre, e por toda a parte se acha em grilhões", diz
Joseph de Maistre que o contrário dessa asserção insensata é que representa a
verdade. O homem nasce escravo e o Cristianismo é que o torna livre.
A desigualdade dos seres racionais, desejada pelo
próprio Criador para sua maior glória, também se acentua pela diversidade dos
graus de mérito e demérito, isto é, pelo exercício do livre arbítrio humano. Na
ordem histórica em que nos achamos, é cegueira piorar o peca do original e suas
consequências: não podemos esquecer que somos criaturas de Deus, que nada
valemos por nós mesmos, e que em nossa condição de humanidade decaída só de
Nosso Senhor Jesus Cristo nos vem o resgate e a salvação. E não se esqueça do
princípio de que se acha em Deus a fonte de toda autoridade. Pregando o
igualitarismo e o erro de que toda autoridade reside essencialmente na nação,
ou no povo soberano, ergue a Revolução aos céus o brado do orgulho, em
contraposição com a humildade que nos vem do autêntico espírito cristão.
Em vez da sociedade orgânica — gerada pela grande
lei do esforço e pelo bom uso da liberdade, hierarquizada, alicerçada na lei
natural que proporciona aos homens os direitos essenciais de possuir bens, de
trabalhar, de escolher estado, de render culto a Deus — a Revolução, através do
liberalismo e do igualitarismo, implanta gradualmente no mundo a tirania
socialista, concentracionária, negadora dos mais elementares direitos
individuais, que substitui o mérito pessoal pela servidão e pela burocracia e
instaura por toda a parte o laicismo ou separação absoluta do temporal e do
espiritual.
As origens do laicismo «vitalmente cristão»
Ora, em fins do século passado avolumava-se a
corrente daqueles que, herdeiros de Lamennais e Montalembert, tentavam promover
a aliança dessa democracia revolucionaria com o Cristianismo. Data dessa época
a explicitação de um dos princípios fundamentais dessa "democracia
cristã" cujos desvios até hoje testemunhamos: o laicismo. Aliada da
Revolução, teria ela que cair no falso dogma da absoluta autonomia da sociedade
política e civil.
"L'Univers-Monde" de 16 de setembro de
1898, dando um resumo de uma conferência proferida em Cherburgo pelo Padre
Naudet (um dos célebres "Abbés democratiques"), atribui-lhe a
seguinte declaração: "A democracia cristã não é um partido confessional".
Lembra Mons. Henri Delassus, em sua obra "Vérités sociales et erreurs
democratiques", que se dava o nome de "confissões" às diversas
seitas do protestantismo que se separavam umas das outras por adotarem
diferentes símbolos ou confissões de fé. A maçonaria, em seus desígnios de
confundir o Catolicismo com as falsas religiões, julgou útil assenhorear-se da
palavra para lhe dar um sentido amplo, aplicando-a indiferentemente às seitas
muçulmanas, pagãs, espíritas, protestantes, e à Santa Igreja de Deus. Quando,
portanto, se começou a dizer: "a Democracia Cristã não é um partido
confessional", a intenção, segundo o autor citado, era fazer entender que,
apesar das aparências em contrário que lhe dava o título, tal partido não era
nem desejava ser um partido católico, e nem mesmo um partido cristão.
Já em 1897 o jornal católico "La
Quinzaine" (número de 1° de março) dizia: "E, de início, façamos esta
observação capital, em nosso parecer: a Democracia Cristã não é um partido
confessional".
Não tardou que se desse mais um passo avante. O
Padre Garnier (outro "Abbé democratique"), no jornal "Le Peuple
Français" de 13 de março de 1899, recomendava: "Os católicos devem
ser de agora em diante católicos não confessionais". E para isso dava a
seguinte razão: se os maçons evitam de se revelarem como tais para atrair o
povo à sua causa, os católicos poderiam usar com proveito a mesma tática.
O grande recurso para conduzir o movimento
democrático no sentido cristão seria, assim, a dissimulação de nossa qualidade
de católicos, procurando-se em acatólicos de toda espécie um substrato comum
que a todos pudesse unir na batalha democrática.
Desprezo da fé e do bom senso
Em que pese o entusiasmo que tal orientação ou
desorientação despertava em certos ambientes democrata-cristãos da época,
lamentava-a o "Osservatore Romano": "Há portanto, e pode haver
um partido que se chama democrata cristão, e que pode ser composto por não
cristãos e mesmo ateus". O Padre Gayraud havia explicado que a Democracia
Cristã não devia ser confessional, porque esse "epíteto implicaria na
exigência de uma profissão de fé religiosa e excluiria por conseguinte do
partido os não católicos não cristãos". Para os Papas, democracia cristã não é forma de
governo, mas ação cristã em benefício do povo.
Ao que o "Osservatore Romano" retrucava:
"Chega-se a desprezar os princípios fundamentais da Fé, da razão, da
lógica, do bom senso" (apud Mons. Delassus, obra cit., p. 76).
Esse movimento de Democracia Cristã mal
compreendida iniciou-se na França em 1890 e chegou ao extremo em 1910, quando
de novo a voz da Santa Sé se fez ouvir pela Carta Apostólica "Notre Charge
Apostolique", dirigida por São Pio X ao Episcopado gaulês. Pretendia-se ir
ao povo para conquistá-lo, mas a conquista se tentava por meio de erros
inicialmente ocultos ou disfarçados, mas depois claros e manifestamente
perniciosos. Por amor à democracia, falava-se até em introduzir na Igreja uma
constituição diferente da que Lhe havia sido conferida por seu Divino Fundador.
Na Encíclica "Pascendi", publicada no ano
de 1907, já São Pio X acentuara essa tendência modernista de democratização da
Igreja e de evasão da sociedade política, ou do homem como cidadão, do poder
disciplinar das leis canônicas. E crescia a propensão à união com os não
católicos. Em 1906 o movimento cristão-democrata de "Le Sillon" entra
em contacto com as uniões cristãs protestantes. Em 1907 é fundado "Le plus
grand Sillon", em que cabiam todos os dissidentes, mesmo que fossem judeus
e pagãos, contanto que quisessem unir esforços na obra de aperfeiçoar a
sociedade segundo os moldes democráticos. Segundo a citada Carta Apostólica,
"Le Sillon" pretendia subtrair-se à direção da Igreja, cortejando o
socialismo e aliando-se aos inimigos de Deus, pregando ademais a igualdade e o
nivelamento absoluto de classes.
Reino legal da fraude e da violência
Uma organização política e social fundada sobre
esta dupla base, a liberdade e a igualdade (às quais logo virá juntar-se a
fraternidade), eis o que eles chamam democracia" (Carta Apostólica cit.).
O caráter nitidamente populista do movimento sillonista se manifesta na idéia
que seus mentores faziam da participação do poder na democracia. A liberdade e
a igualdade compreenderiam um tríplice elemento: político, econômico e moral.
Do ponto de vista político, a autoridade seria dividida de tal modo que cada
cidadão chegasse a ser uma espécie de rei. Na ordem econômica, subtraído a uma
classe particular, o patronato se multiplicaria tanto que cada operário se
tornaria como que patrão. O elemento moral seria a dedicação ao bem da classe
profissional e da sociedade, que substituiria o egoísmo e a estreiteza de
vistas dos interesses privados. O poder desceria de Deus, mas de tal maneira
que subiria do povo para os governantes. "Prescindindo-se da anomalia de uma
delegação que sobe, diz o Papa, quando por sua condição é natural que desça,
Leão XIII refutou de antemão esta tentativa de conciliação da doutrina católica
com o erro do filosofismo".
De "a democracia será católica", que era
a palavra de ordem inicial, passou-se para "a democracia não será
anticatólica", como tampouco antijudia ou antibudista. A que ficava
reduzido o catolicismo de semelhante movimento? Responde São Pio X: "Ah!
Ele que dera antes tão formosas esperanças, aquele rio cristalino e impetuoso
foi obstruído em seu curso pelos inimigos modernos da Igreja, e já não
constitui mais que um mísero afluente do grande movimento de apostasia
organizado em todas as nações para o estabelecimento de uma igreja universal
sem dogmas nem hierarquia, sem regra para o espírito nem freio para as paixões;
uma igreja que, sob pretexto de liberdade e dignidade humana, traria novamente
ao mundo, se triunfasse, com o reinado legal da fraude e da violência, a
opressão dos fracos, dos que sofrem e trabalham" (Carta Apostólica cit.).
A Igreja entre parêntesis
Em nossos dias, essa tendência em favor um falso
conceito de democracia cristã, ou da aliança do Cristianismo com a Revolução,
tem em Jacques Maritain um de seus principais arautos.
Na democracia cristã maritainiana vemos, como nos
movimentos anteriores, a infiltração do laicismo e do interconfessionalismo,
sob a capa de um suspeito "Estado leigo vitalmente cristão". Estado
pluralista e coletivista, fase de progresso em relação à quadra infantil da
Idade Média, isto é, fase em que a divisão religiosa e o socialismo marxista
constituiriam um "ganho histórico".
A sociedade que Maritain considera ideal e cuja
aproximação assinalaria o progresso de toda sociedade política concreta, é uma
sociedade composta de pessoas enquanto pessoas, concebidas como
insubordináveis, onissuficientes, emancipadas espiritual, política e
economicamente. No dizer de São Pio X, todos camaradas, todos patrões, todos
reis. E a Igreja colocada entre parêntesis. Pois o homem, atingindo a idade
adulta nesta nova fase da Cristandade, só obedeceria a si próprio, e
impor-se-ia a separação da Igreja e do Estado pela diferenciação da esfera
própria das duas sociedades.
Do ponto de vista social e econômico, Maritain
atribui ao proletariado a missão histórica que Marx lhe reservou: o progresso
social seria implantado através do socialismo marxista, do qual adviria a
tomada de consciência da dignidade e da solidariedade operaria.
"Note-se, entretanto, uma das consequências
dessa tomada de consciência. Se o proletariado exige ser tratado como uma
pessoa maior, por isso mesmo não deve ser socorrido, melhorado ou salvo por
outra classe social. É a ele, pelo contrário, e a seu movimento de ascensão
histórica, que cabe o papel principal na fase próxima da evolução"
("Humanisme Integral", ed. Montaigne, 1936, p. 250). E, tal como se
apregoa nos manifestos comunistas, as elites da sociedade futura, segundo as
profecias maritainianas, seriam formadas por operários e camponeses:
"Agora, por bem ou por mal, será mister que, de acordo com um postulado
essencial do pensamento democrático, as novas elites saiam das profundezas da
nação; elas serão compostas por elites operarias e camponesas"
("Christianisme et Democratie", p. 89).
Maritain e o P. D. C. italiano
É evidente o papel das idéias errôneas de Maritain
nos desvios da Democracia Cristã esquerdista de nossos dias. Expressiva
demonstração desse fato, tivemo-la recentemente, por ocasião da polêmica
suscitada na Itália pelos artigos em que o Revmo. Pe. A. Messineo, S.J.,
mostrou a nocividade do pensamento político-social do autor do "Humanismo
Integral".
Diz o jornal "Il Tempo" de 8 de outubro
de 1956 que o Prof. La Pira, prefeito demo-cristão de Florença, é reputado como
um dos maiores, senão mesmo o maior dos sequazes de Maritain na Itália. Em
entrevista ao citado jornal, o Sr. La Pira promove a defesa do filósofo
francês, dizendo que "Humanismo Integral" é o "título de uma
coletânea de conferencias pronunciadas em 1939: matéria fragmentaria e esparsa,
não concentrada e sistematizada em tratamento orgânico". A verdadeira
doutrina de Maritain estaria contida em sua obra "Primauté du
Spirituel". Acontece que o "Humanismo Integral", conforme
declaração do autor em prefácio é "o texto de seis aulas proferidas em
agosto de 1934 na Universidade de verão de Santander". Quanto ao
"Primauté du Spirituel", é de uma fase que o próprio filósofo
repudia, a fase em que também escreveu "Antimoderne", livro
posteriormente retirado da lista de suas obras completas, publicada nas
primeiras páginas de suas novas produções. La Pira, entretanto, "não nega
que as conferências que formam o Humanismo Integral contenham erros, que se
explicariam pelos anos perturbados em que surgiram, mas sustenta que se trata
de erros formais, de tática, de expressão, não de erros que atinjam a
Doutrina" (artigo citado de "Il Tempo").
Os leitores julgarão da validade desses argumentos
ao compulsar o trabalho do Revmo. Pe. A. Messineo, que publicamos neste número.
Outros defensores de Maritain na Itália foram mais canhestros, pois lhe
atribuíram justamente aquilo que se censura na atuação da ala esquerdista do
Partido Democrata Cristão da península, isto é, a aliança com o socialismo
marxista: "Nestes dias, por exemplo, com a unificação socialista se
prepara a possibilidade de um encontro entre socialistas e católicos. Ora, uma
colaboração de várias forças parece reprovável ao Pe. Messineo, mas não a
Maritain, que já havia propugnado por ela em 1936!" É o que se lê no
artigo "Breve saggio per una polemica — La condanna di Maritain", por
Giovanni Fincato, na revista "Adesso" de 15 de outubro de 1956.
Concluamos: Maritain segue a trilha de Marc
Sangnier, o líder de "Le Sillon", pois os desvios doutrinários e
disciplinares da chamada Democracia Cristã de nossos dias têm nele um dos seus
mais incontestáveis autores intelectuais.
(1) "A
Democracia Cristã na encruzilhada: colaboração ou luta com o socialismo"
(CAUSAS PROFUNDAS DOS DESVIOS DA DEMOCRACIA CRISTÃ, de Cunha Alvarenga, "Catolicismo",
n.º 74, fevereiro de 1957.)