domingo, 19 de agosto de 2018

372ª Nota - As causas profundas dos desvios da democracia cristã



Ao empreender a tarefa de traçar as origens dos desvios doutrinários e disciplinares da "democracia cristã", queremos deixar bem demonstrado o que dissemos em artigo anterior (1), isto é, que tal movimento político-social-econômico nada tem de comum com o que aquela expressão designa nos documentos pontifícios.

Com efeito, o Santo Padre Leão XIII, na Encíclica "Graves de communi" sobre a democracia cristã (18 de janeiro de 1901), mostrou o verdadeiro sentido em que se devem usar essas palavras, alertando os fiéis contra os abusos que então já se registravam a respeito. Assim, diz ele, "não há dúvida alguma sobre o que pretende a democracia social e sobre o que deva anelar a democracia cristã. Porque a primeira em muitos chega a tal grau de malícia, que nada admite fora do natural, busca exclusivamente os bens corpóreos e externos, pondo a felicidade humana em sua aquisição e gozo. Daí seu desejo de que a autoridade resida na plebe, para que, suprimidas as classes sociais e nivelados os cidadãos, se estabeleça a igualdade de bens; como consequência se aboliria o direito de propriedade e a fortuna dos particulares, assim como os meios de vida passariam a ser comuns". A democracia cristã, "na presente matéria, deve entender-se de modo que, deixado de lado todo conceito político, unicamente signifique a própria ação benéfica cristã em favor do povo" (ibid.). Pelo que, "a mente e ação dos católicos, ao promover o bem dos proletários, de modo algum há de tender a desejar e tratar de introduzir um regime social com preferência a outro" (ibid.). Não deve, pois, a democracia cristã ser exclusivamente populista nem significar desprezo da autoridade. E a verdadeira democracia cristã é própria da Igreja, achando-se, portanto, em campo oposto ao laicismo da democracia revolucionaria.
 
Onde entram o liberalismo e o igualitarismo

Na verdade, na quadra em que surgiu a Encíclica "Graves de communi" o trabalho insidioso do liberalismo e do socialismo nas hostes católicas já apresentava amargos frutos. O liberalismo e o igualitarismo pregados pelo regime democrático emanado da Revolução Francesa são filhos da negação do pecado original. Revolução e Cristianismo se opõem "per diametrum". Os discípulos de Rousseau apregoavam que os homens nascem bons, iguais e livres, mas que a sociedade os perverte, degrada e escraviza. Comentando a máxima com que Rousseau começa seu "Contrato Social": "O homem nasce livre, e por toda a parte se acha em grilhões", diz Joseph de Maistre que o contrário dessa asserção insensata é que representa a verdade. O homem nasce escravo e o Cristianismo é que o torna livre.

A desigualdade dos seres racionais, desejada pelo próprio Criador para sua maior glória, também se acentua pela diversidade dos graus de mérito e demérito, isto é, pelo exercício do livre arbítrio humano. Na ordem histórica em que nos achamos, é cegueira piorar o peca do original e suas consequências: não podemos esquecer que somos criaturas de Deus, que nada valemos por nós mesmos, e que em nossa condição de humanidade decaída só de Nosso Senhor Jesus Cristo nos vem o resgate e a salvação. E não se esqueça do princípio de que se acha em Deus a fonte de toda autoridade. Pregando o igualitarismo e o erro de que toda autoridade reside essencialmente na nação, ou no povo soberano, ergue a Revolução aos céus o brado do orgulho, em contraposição com a humildade que nos vem do autêntico espírito cristão.

Em vez da sociedade orgânica — gerada pela grande lei do esforço e pelo bom uso da liberdade, hierarquizada, alicerçada na lei natural que proporciona aos homens os direitos essenciais de possuir bens, de trabalhar, de escolher estado, de render culto a Deus — a Revolução, através do liberalismo e do igualitarismo, implanta gradualmente no mundo a tirania socialista, concentracionária, negadora dos mais elementares direitos individuais, que substitui o mérito pessoal pela servidão e pela burocracia e instaura por toda a parte o laicismo ou separação absoluta do temporal e do espiritual.

As origens do laicismo «vitalmente cristão»

Ora, em fins do século passado avolumava-se a corrente daqueles que, herdeiros de Lamennais e Montalembert, tentavam promover a aliança dessa democracia revolucionaria com o Cristianismo. Data dessa época a explicitação de um dos princípios fundamentais dessa "democracia cristã" cujos desvios até hoje testemunhamos: o laicismo. Aliada da Revolução, teria ela que cair no falso dogma da absoluta autonomia da sociedade política e civil.

"L'Univers-Monde" de 16 de setembro de 1898, dando um resumo de uma conferência proferida em Cherburgo pelo Padre Naudet (um dos célebres "Abbés democratiques"), atribui-lhe a seguinte declaração: "A democracia cristã não é um partido confessional". Lembra Mons. Henri Delassus, em sua obra "Vérités sociales et erreurs democratiques", que se dava o nome de "confissões" às diversas seitas do protestantismo que se separavam umas das outras por adotarem diferentes símbolos ou confissões de fé. A maçonaria, em seus desígnios de confundir o Catolicismo com as falsas religiões, julgou útil assenhorear-se da palavra para lhe dar um sentido amplo, aplicando-a indiferentemente às seitas muçulmanas, pagãs, espíritas, protestantes, e à Santa Igreja de Deus. Quando, portanto, se começou a dizer: "a Democracia Cristã não é um partido confessional", a intenção, segundo o autor citado, era fazer entender que, apesar das aparências em contrário que lhe dava o título, tal partido não era nem desejava ser um partido católico, e nem mesmo um partido cristão.

Já em 1897 o jornal católico "La Quinzaine" (número de 1° de março) dizia: "E, de início, façamos esta observação capital, em nosso parecer: a Democracia Cristã não é um partido confessional".

Não tardou que se desse mais um passo avante. O Padre Garnier (outro "Abbé democratique"), no jornal "Le Peuple Français" de 13 de março de 1899, recomendava: "Os católicos devem ser de agora em diante católicos não confessionais". E para isso dava a seguinte razão: se os maçons evitam de se revelarem como tais para atrair o povo à sua causa, os católicos poderiam usar com proveito a mesma tática.

O grande recurso para conduzir o movimento democrático no sentido cristão seria, assim, a dissimulação de nossa qualidade de católicos, procurando-se em acatólicos de toda espécie um substrato comum que a todos pudesse unir na batalha democrática.

Desprezo da fé e do bom senso

Em que pese o entusiasmo que tal orientação ou desorientação despertava em certos ambientes democrata-cristãos da época, lamentava-a o "Osservatore Romano": "Há portanto, e pode haver um partido que se chama democrata cristão, e que pode ser composto por não cristãos e mesmo ateus". O Padre Gayraud havia explicado que a Democracia Cristã não devia ser confessional, porque esse "epíteto implicaria na exigência de uma profissão de fé religiosa e excluiria por conseguinte do partido os não católicos não cristãos". Para os Papas, democracia cristã não é forma de governo, mas ação cristã em benefício do povo.

Ao que o "Osservatore Romano" retrucava: "Chega-se a desprezar os princípios fundamentais da Fé, da razão, da lógica, do bom senso" (apud Mons. Delassus, obra cit., p. 76).

Esse movimento de Democracia Cristã mal compreendida iniciou-se na França em 1890 e chegou ao extremo em 1910, quando de novo a voz da Santa Sé se fez ouvir pela Carta Apostólica "Notre Charge Apostolique", dirigida por São Pio X ao Episcopado gaulês. Pretendia-se ir ao povo para conquistá-lo, mas a conquista se tentava por meio de erros inicialmente ocultos ou disfarçados, mas depois claros e manifestamente perniciosos. Por amor à democracia, falava-se até em introduzir na Igreja uma constituição diferente da que Lhe havia sido conferida por seu Divino Fundador.

Na Encíclica "Pascendi", publicada no ano de 1907, já São Pio X acentuara essa tendência modernista de democratização da Igreja e de evasão da sociedade política, ou do homem como cidadão, do poder disciplinar das leis canônicas. E crescia a propensão à união com os não católicos. Em 1906 o movimento cristão-democrata de "Le Sillon" entra em contacto com as uniões cristãs protestantes. Em 1907 é fundado "Le plus grand Sillon", em que cabiam todos os dissidentes, mesmo que fossem judeus e pagãos, contanto que quisessem unir esforços na obra de aperfeiçoar a sociedade segundo os moldes democráticos. Segundo a citada Carta Apostólica, "Le Sillon" pretendia subtrair-se à direção da Igreja, cortejando o socialismo e aliando-se aos inimigos de Deus, pregando ademais a igualdade e o nivelamento absoluto de classes.

Reino legal da fraude e da violência

Uma organização política e social fundada sobre esta dupla base, a liberdade e a igualdade (às quais logo virá juntar-se a fraternidade), eis o que eles chamam democracia" (Carta Apostólica cit.). O caráter nitidamente populista do movimento sillonista se manifesta na idéia que seus mentores faziam da participação do poder na democracia. A liberdade e a igualdade compreenderiam um tríplice elemento: político, econômico e moral. Do ponto de vista político, a autoridade seria dividida de tal modo que cada cidadão chegasse a ser uma espécie de rei. Na ordem econômica, subtraído a uma classe particular, o patronato se multiplicaria tanto que cada operário se tornaria como que patrão. O elemento moral seria a dedicação ao bem da classe profissional e da sociedade, que substituiria o egoísmo e a estreiteza de vistas dos interesses privados. O poder desceria de Deus, mas de tal maneira que subiria do povo para os governantes. "Prescindindo-se da anomalia de uma delegação que sobe, diz o Papa, quando por sua condição é natural que desça, Leão XIII refutou de antemão esta tentativa de conciliação da doutrina católica com o erro do filosofismo".

De "a democracia será católica", que era a palavra de ordem inicial, passou-se para "a democracia não será anticatólica", como tampouco antijudia ou antibudista. A que ficava reduzido o catolicismo de semelhante movimento? Responde São Pio X: "Ah! Ele que dera antes tão formosas esperanças, aquele rio cristalino e impetuoso foi obstruído em seu curso pelos inimigos modernos da Igreja, e já não constitui mais que um mísero afluente do grande movimento de apostasia organizado em todas as nações para o estabelecimento de uma igreja universal sem dogmas nem hierarquia, sem regra para o espírito nem freio para as paixões; uma igreja que, sob pretexto de liberdade e dignidade humana, traria novamente ao mundo, se triunfasse, com o reinado legal da fraude e da violência, a opressão dos fracos, dos que sofrem e trabalham" (Carta Apostólica cit.).

A Igreja entre parêntesis

Em nossos dias, essa tendência em favor um falso conceito de democracia cristã, ou da aliança do Cristianismo com a Revolução, tem em Jacques Maritain um de seus principais arautos.

Na democracia cristã maritainiana vemos, como nos movimentos anteriores, a infiltração do laicismo e do interconfessionalismo, sob a capa de um suspeito "Estado leigo vitalmente cristão". Estado pluralista e coletivista, fase de progresso em relação à quadra infantil da Idade Média, isto é, fase em que a divisão religiosa e o socialismo marxista constituiriam um "ganho histórico".

A sociedade que Maritain considera ideal e cuja aproximação assinalaria o progresso de toda sociedade política concreta, é uma sociedade composta de pessoas enquanto pessoas, concebidas como insubordináveis, onissuficientes, emancipadas espiritual, política e economicamente. No dizer de São Pio X, todos camaradas, todos patrões, todos reis. E a Igreja colocada entre parêntesis. Pois o homem, atingindo a idade adulta nesta nova fase da Cristandade, só obedeceria a si próprio, e impor-se-ia a separação da Igreja e do Estado pela diferenciação da esfera própria das duas sociedades.

Do ponto de vista social e econômico, Maritain atribui ao proletariado a missão histórica que Marx lhe reservou: o progresso social seria implantado através do socialismo marxista, do qual adviria a tomada de consciência da dignidade e da solidariedade operaria.

"Note-se, entretanto, uma das consequências dessa tomada de consciência. Se o proletariado exige ser tratado como uma pessoa maior, por isso mesmo não deve ser socorrido, melhorado ou salvo por outra classe social. É a ele, pelo contrário, e a seu movimento de ascensão histórica, que cabe o papel principal na fase próxima da evolução" ("Humanisme Integral", ed. Montaigne, 1936, p. 250). E, tal como se apregoa nos manifestos comunistas, as elites da sociedade futura, segundo as profecias maritainianas, seriam formadas por operários e camponeses: "Agora, por bem ou por mal, será mister que, de acordo com um postulado essencial do pensamento democrático, as novas elites saiam das profundezas da nação; elas serão compostas por elites operarias e camponesas" ("Christianisme et Democratie", p. 89).

Maritain e o P. D. C. italiano

É evidente o papel das idéias errôneas de Maritain nos desvios da Democracia Cristã esquerdista de nossos dias. Expressiva demonstração desse fato, tivemo-la recentemente, por ocasião da polêmica suscitada na Itália pelos artigos em que o Revmo. Pe. A. Messineo, S.J., mostrou a nocividade do pensamento político-social do autor do "Humanismo Integral".

Diz o jornal "Il Tempo" de 8 de outubro de 1956 que o Prof. La Pira, prefeito demo-cristão de Florença, é reputado como um dos maiores, senão mesmo o maior dos sequazes de Maritain na Itália. Em entrevista ao citado jornal, o Sr. La Pira promove a defesa do filósofo francês, dizendo que "Humanismo Integral" é o "título de uma coletânea de conferencias pronunciadas em 1939: matéria fragmentaria e esparsa, não concentrada e sistematizada em tratamento orgânico". A verdadeira doutrina de Maritain estaria contida em sua obra "Primauté du Spirituel". Acontece que o "Humanismo Integral", conforme declaração do autor em prefácio é "o texto de seis aulas proferidas em agosto de 1934 na Universidade de verão de Santander". Quanto ao "Primauté du Spirituel", é de uma fase que o próprio filósofo repudia, a fase em que também escreveu "Antimoderne", livro posteriormente retirado da lista de suas obras completas, publicada nas primeiras páginas de suas novas produções. La Pira, entretanto, "não nega que as conferências que formam o Humanismo Integral contenham erros, que se explicariam pelos anos perturbados em que surgiram, mas sustenta que se trata de erros formais, de tática, de expressão, não de erros que atinjam a Doutrina" (artigo citado de "Il Tempo").

Os leitores julgarão da validade desses argumentos ao compulsar o trabalho do Revmo. Pe. A. Messineo, que publicamos neste número. Outros defensores de Maritain na Itália foram mais canhestros, pois lhe atribuíram justamente aquilo que se censura na atuação da ala esquerdista do Partido Democrata Cristão da península, isto é, a aliança com o socialismo marxista: "Nestes dias, por exemplo, com a unificação socialista se prepara a possibilidade de um encontro entre socialistas e católicos. Ora, uma colaboração de várias forças parece reprovável ao Pe. Messineo, mas não a Maritain, que já havia propugnado por ela em 1936!" É o que se lê no artigo "Breve saggio per una polemica — La condanna di Maritain", por Giovanni Fincato, na revista "Adesso" de 15 de outubro de 1956.

Concluamos: Maritain segue a trilha de Marc Sangnier, o líder de "Le Sillon", pois os desvios doutrinários e disciplinares da chamada Democracia Cristã de nossos dias têm nele um dos seus mais incontestáveis autores intelectuais.

(1)  "A Democracia Cristã na encruzilhada: colaboração ou luta com o socialismo"
(CAUSAS PROFUNDAS DOS DESVIOS DA DEMOCRACIA CRISTÃ,  de Cunha Alvarenga, "Catolicismo", n.º 74, fevereiro de 1957.)