“A questão [dos papas conciliares] não é
de primordial importância. Se eles não foram Papas, de qualquer modo a fé
católica e a moral, por meio das quais devo ‘trabalhar por minha salvação com
temor e tremor’ (Fl 2, 12), não mudaram um iota. E se eles são Papas, de
qualquer modo não posso obedecer-lhes na medida em que se tenham afastado dessa
fé e dessa moral, pois ‘nós devemos obedecer antes a Deus que aos homens’ (At
5, 29).” [Comentário Eleison 341: “Ansiedade Sedevacantista I”, de 25 jan.
2014.]
Aí está um parágrafo que não deixa de
impressionar a quem quer que tenha a preocupação pela salvação de sua alma... e que,
na realidade, não passa de um grosseiro sofisma. Pois eis aqui a fé católica: Em
consequência nós declaramos, dizemos e definimos que é absolutamente necessário
para a salvação, para toda criatura humana, estar sujeita ao Romano Pontífice (Bonifácio
VIII, Bula Unam Sanctam, 18 de novembro de 1302). Dissociar a
salvação eterna da submissão ao Soberano Pontífice é injuriar a Jesus Cristo,
que fundou a Igreja sobre São Pedro e seus sucessores, e é perder as almas.
Invocar os Atos dos
Apóstolos (“deve-se obedecer a Deus antes que aos homens”) contra o
Soberano Pontífice não deixa de impressionar a todos aqueles que querem
obedecer a Deus acima de tudo, mas é na realidade um grosseiro sofisma. Pois eis aqui a fé católica: Muito
pelo contrário, o Divino Redentor governa Seu Corpo Místico visivelmente e
ordinariamente por Seu vigário na terra (Pio XII, Mystici
Corporis, 29 de junho de 1943). Dissociar a autoridade do Soberano
Pontífice da autoridade de Jesus Cristo, ou pretender que obedecer ao Papa seja
simplesmente “obedecer aos homens”, é injuriar a Jesus Cristo, que comunicou
Sua própria autoridade a São Pedro e aos sucessores deste, e é perder as almas.
E Mons. Williamson ainda convoca, de
passagem, Santo Agostinho em seu auxílio, atribuindo-lhe o princípio: in
dubiis libertas. Não somente a atribuição é falsa [1], mas mais ainda,
Santo Agostinho insistiria que a dúvida, em matéria de doutrina e de ação, não
engendra a liberdade mas, sim, a necessidade de investigar mais intensamente a
verdade. A dúvida não é um bem desejável (o que poderia justificar a liberdade
que a ela se atribui), mas, sim, uma carência do espírito, à qual se deve
remediar — se isso puder ser objeto de uma inquirição virtuosa.
[1.
Com frequência se vê, aqui ou ali, atribuir-se a Santo Agostinho o adágio: “In
necessariis unitas, in dubiis libertas, in omnibus caritas”, unidade nas coisas
necessárias, liberdade nas coisas duvidosas, caridade em todas as coisas. Ora,
essa fórmula não se encontra em Santo Agostinho. Na verdade, ela se deve ao
protestante Peter Meiderlin (Rupertus Meldenius) (22 de março de 1582 – 1.º de
junho de 1651) a propósito das controvérsias entre os protestantes. Referência:
Joseph Leclerc, S.J., in: Recherches de Sciences Religieuses, tomo XLIX,
dezembro de 1961, pp. 549-560. Nota complementar no tomo LII-3
pág. 432 (1964). Cf. Esprit et Vie (ex-Ami du Clergé) de 20 de março
de 1973, pág. 98 (capa). Hipótese: é o título da obra (Parænesis votiva pro
pace ecclesiæ ad theologos augustanæ confessionis) donde essa frase foi tirada
que teria feito com que ela fosse atribuída a Santo Agostinho — mas por crassa
confusão, pois “Augustanæ Confessionis” não designa as “Confissões de Santo
Agostinho”, mas a “Confissão de Augsburgo”, manifesto doutrinal do
protestantismo luterano. Ademais, é difícil de atribuir esse texto a Santo
Agostinho, por pouco que se reflita. Ele não teria encontrado dificuldade
alguma, é claro, quanto ao “in omnibus caritas”, muito pelo contrário. Mas a
distinção entre “dubiis” e “necessariis” é muito falha: não somente são duas
noções que não pertencem ao mesmo gênero (uma refere-se ao conhecimento, outra
ao ser), mas também, entre as duas, há todo o provável, e o certo contingente.
E depois, há coisas duvidosas que se pode (ou mesmo se deve) deixar como estão,
enquanto que há dúvidas que se tem o dever de dissipar: quando está em jogo a
honra de Deus, a validade dos sacramentos, a conduta a seguir com justiça, o
que for necessário à compreensão da fé e da palavra do Magistério. De fato,
essa distinção não tem sentido a não ser na ótica do livre-exame protestante:
lá onde a Bíblia não sofra divergência alguma de interpretação, necessidade e
unidade. O restante é removido para o domínio do duvidoso e do livre, cada qual
sendo árbitro do que é necessário e do que é duvidoso.]
Assim embasado, Mons. Williamson
empreende uma demolição sistemática do Magistério da Igreja: o Magistério
ordinário e universal não mais existe, porque ele pretende
entender ordinário em um sentido trivial, e porque ele
entende universal num sentido explicitamente descartado pelo
(primeiro) Concílio do Vaticano e adotado pelo magistério pós-conciliar [2].
Os juízos ex cathedra do Soberano Pontífice não mais existem, porque
precisam fundar-se (pretende ele) no magistério ordinário e universal (que não
mais existe); ele sustenta essa pretensão em contradição com a definição do
(primeiro) Concílio do Vaticano que precisa que “estas definições do Romano
Pontífice são irreformáveis por si mesmas e não em virtude do consenso da
Igreja”.
[2.
Concílio do Vaticano, Dei Filius, Denzinger 1792: “Deve-se
crer com fé divina e católica tudo o que está contido na palavra de Deus
escrita ou transmitida por tradição, e que a Igreja, quer com juízo solene,
quer com seu magistério ordinário e universal propõe a crer como verdade
revelada.” O sentido da
expressão Magistério Ordinário e Universal é precisado nas
intervenções e relatórios oficiais da Deputação da Fé, encarregada de explicar
aos Padres, antes do escrutínio, o sentido exato do que eles iam definir.
A Deputação remete à Carta Apostólica de Pio IX Tuas
Libenter de 21 de dezembro de 1863: “Ainda que não se trate senão daquela
submissão que deve se manifestar com ato de fé divina, não se pode restringi-la
unicamente aos pontos definidos pelos decretos dos Concílios ecumênicos ou dos
Romanos Pontífices e desta Sé Apostólica; é necessário estendê-la também a tudo
aquilo que é transmitido, como divinamente revelado, pelo corpo docente
ordinário de toda a Igreja espalhada pelo
universo” Denzinger 1683.
Universal indica nessa expressão a universalidade da Igreja
docente: o Papa e os bispos subordinados. O Magistério universal é,
pois, o poder de ensinar da Igreja exercido pelo Papa e o conjunto dos
bispos atualmente viventes. Ele é ordinário, porque tem lugar por modo de
exposição, e não por modo de juízo solene.
E eis que Mons. Williamson quer entender ordinário no sentido
em que o empregamos na expressão trivial: sair do ordinário, e eis que ele
adere {se rallie} ao sentido pós-conciliar da palavra universal, a saber:
universalidade no tempo e não simplesmente no espaço - diacrônica e não
simplesmente sincrônica (Nota doutrinal da Congregação para a Doutrina da
fé anexa à carta apostólica Ad tuendam fidem de João Paulo II, 18 de
maio de 1998).]
Essa demolição continua pela confusão
entre a ordem do conhecimento e a ordem do ser, pela confusão entre
infalibilidade e inerrância; pela pretensão de fazer da conformidade
com a Tradição uma condição da infalibilidade do magistério, quando
ela é consequência desta, etc.
Não há mais magistério, não há mais obediência,
não há mais unidade da hierarquia… não há mais nada. Esvaziar o dogma católico
pelo interior, alterando as noções que Deus e o Magistério da Igreja utilizam
para dirigir-se à inteligência humana, isso tem nome na história das doutrinas:
chama-se modernismo. Modernismo no exato sentido do termo, tal qual o
forja São Pio X. Não utilizo o termo em sentido mundano nem no sentido
encontrado nas polêmicas conduzidas por ignorantes: mas, sim, no sentido
de destruição da inteligência da fé.
Não há mais Igreja Católica, tampouco.
Pois como buquê final, pensando contemplar “a infinita alteza e profundidade do
próprio Deus” [N. do T. – Comentário Eleison 345: “Humanização Fatal”, de 22 fev.
2014.], eis que Mons. Williamson nos entrega o fundo de seu pensamento: há sete
séculos que a Igreja Católica pôs-se a reboque da humanidade que vira as costas
a Deus; a Igreja está escorregando ladeira abaixo, e, para compensar ou
camuflar isso, ela reforça a infalibilidade do Magistério. Isso que é fina
teologia, e que profundo amor à Igreja! O cavaleiro Williamson se encontra,
através dos séculos, solitário a combater de forma eficaz e adequada “a heresia
universal do liberalismo”. Mas a que preço!
É a este triste nível que
chegamos. Kyrie eleison, é o caso de dizer e repetir sem cessar: Senhor,
tende piedade de nós.
_____________
Rev. Pe. Hervé BELMONT, Empresa
Williamson m.g.r., demolições de todo gênero, mar. 2014, trad. br. por F.
Coelho, São Paulo, mar. 2014, blogue Acies Ordinata, http://wp.me/pw2MJ-2es