SÃO
ROBERTO BELLARMINO, DOUTOR DA IGREJA
(De Romano Pontifice, Lib. II, Cap. 30)
(De Romano Pontifice, Lib. II, Cap. 30)
Respondo:
sobre esse assunto há cinco opiniões.
A
primeira é de Alberto Pighi (Hierarch. Eccles., lib. 4, cap. 8), para quem o
Papa não pode ser herege e portanto não pode ser deposto em caso
algum. Essa sentença é provável e pode ser defendida com
facilidade, como depois mostraremos no lugar devido. Como, porém, não
é certa, e como a opinião comum é em contrário, é útil examinar que
solução dar à questão, caso o Papa possa ser herege.
[…]
A
quarta opinião é a de Caietano, para quem (de auctor. papae et conc., cap. 20
et 21) o Papa manifestamente herético não está “ipso facto” deposto, mas
pode e deve ser deposto pela Igreja. A meu juízo, essa sentença
não pode ser defendida.
Pois,
em primeiro lugar, prova-se com argumentos de autoridade e de
razão que o herege manifesto está “ipso facto” deposto. O argumento de
autoridade baseia-se em São Paulo (epist. ad Titum, 3), que ordena que o herege
seja evitado depois de duas advertências, isto é, depois de se revelar
manifestamente pertinaz – o que significa antes de qualquer excomunhão ou
sentença judicial. É isso o que escreve São Jerônimo, acrescentando que os
demais pecadores são excluídos da Igreja por sentença de excomunhão, mas os
hereges afastam-se e separam-se a si próprios do corpo de Cristo. Ora, o Papa
que permanece Papa não pode ser evitado, pois como haveríamos de evitar nossa
própria cabeça? Como nos afastaríamos de um membro unido a nós?
Este
princípio é certíssimo. O não cristão não pode de modo algum ser Papa,
como o admite o próprio Caietano (ibidem, cap. 26). A razão disso é que
não pode ser cabeça o que não é membro; ora, quem não é cristão não é membro da
Igreja; e o herege manifesto não é cristão, como claramente ensinam São
Cipriano (lib. 4, epist. 2), Santo Atanásio (ser. 2 cont.
Arian.), Santo Agostinho (lib. de. grat. Christ. cap. 20), São Jerônimo
(cont. Lucifer.) e outros; logo o herege manifesto não pode ser Papa.
A
isso responde Caietano (in Apol. pro tract. praedicto cap. 25 et in
ipso tract. cap. 22) que o herege não é cristão “simpliciter”, mas o é
“secundum quid”. Pois, dado que duas coisas constituem o cristão – a fé e o
caráter – o herege, tendo perdido a fé, ainda está de algum modo unido à Igreja
e é capaz de jurisdição; portanto, ainda é Papa, mas deve ser destituído, uma
vez que está disposto, com disposição última, para deixar de ser Papa: como o
homem que ainda não está morto, mas se encontra “in extremis”.
Contra
isso: em primeiro lugar, se o herege, em virtude do caráter, permanecesse, “in
actu”, unido à Igreja, nunca poderia ser cortado e separado dela “in actu”,
pois o caráter é indelével. Mas não há quem negue que alguns podem ser “in
actu” separados da Igreja. Logo, o caráter não faz com que o herege esteja
“in actu” na Igreja, mas é apenas um sinal de que ele esteve na Igreja e de que
a ela deve voltar. Analogamente, quando a ovelha erra nas montanhas, o caráter
nela impresso não faz com que ela esteja no redil, mas indica de que redil
fugiu e a que redil deve ser novamente conduzida. Essa verdade tem uma
confirmação em São Tomás, que diz (S.Theol. III,8,3) que não estão “in
actu” unidos a Cristo os que não têm fé, mas só o estão potencialmente – e São
Tomás aí se refere à união interna, e não à externa, que se faz pela confissão
da fé e pelos sinais visíveis. Portanto, como o caráter é algo de interno, e
não de externo, segundo São Tomás o mero caráter não une, “in actu”, o homem a
Cristo.
Ainda
contra o argumento de Caietano: ou a fé é uma disposição “simpliciter”
necessária para que alguém seja Papa, ou apenas para que o seja de modo mais
perfeito (“ad bene esse”). Na primeira hipótese, caso essa disposição seja
eliminada pela disposição contrária, que é a heresia, imediatamente o Papa
deixa de ser tal: pois a forma não pode manter-se sem as disposições
necessárias. Na segunda hipótese, o Papa não pode ser deposto em razão da
heresia, pois em caso contrário deveria também ser deposto por ignorância,
improbidade e outras causas semelhantes, que impedem a ciência, a probidade e
demais disposições necessárias para que seja Papa de modo mais perfeito (“ad
bene esse papae”). Além disso, Caietano reconhece (tract. praed., cap. 26) que,
pela ausência das disposições necessárias não “simpliciter”, mas apenas para
maior perfeição (“ad bene esse”), o Papa não pode ser deposto.
A
isso, Caietano responde que a fé é uma disposição “simpliciter” necessária, mas
parcial, e não total; e que, portanto, desaparecendo a fé o Papa ainda pode
continuar sendo Papa, em razão da outra parte da disposição, que é o caráter, o
qual ainda permanece.
Contra
esse argumento: ou a disposição total, constituída pelo caráter e pela fé, é
“simpliciter” necessária, ou não o é, bastando então a disposição parcial. Na
primeira hipótese, desaparecendo a fé já não resta a disposição “simpliciter”
necessária, pois a disposição necessária “simpliciter” era a total, e a total
já não existe. Na segunda hipótese, a fé só é necessária para um modo mais
perfeito de ser (“ad bene esse”), e, portanto, a sua ausência não justifica a
deposição do Papa. Além disso, o que se encontra na disposição última para a
morte, logo em seguida deixa de existir, sem a intervenção de qualquer outra
força externa, como é óbvio; logo, também o Papa herege deixa de ser Papa
por si mesmo, sem qualquer deposição.
Por
fim, os Santos Padres ensinam unanimemente, não só que os hereges
estão fora da Igreja, mas também que estão “ipso facto” privados de toda
jurisdição e dignidade eclesiásticas. São Cipriano (lib. 2, epist. 6)
diz: “afirmamos que absolutamente todos os hereges e cismáticos não têm poder e
direito algum”; e ensina também (lib. 2, epist. 1) que os
hereges que retornam à Igreja devem ser recebidos como leigos, ainda que tenham
sido anteriormente presbíteros ou Bispos na Igreja. Santo Optato
(lib. 1 cont. Parmen.) ensina que os hereges e cismáticos não podem
ter as chaves do reino dos céus, nem ligar ou desligar. O mesmo ensinam Santo
Ambrósio (lib. 1 de poenit., cap. 2), Santo Agostinho (in Enchir., cap.
65), São Jerônimo (lib. cont. Lucifer.)...
O Papa
São Celestino I (epist. ad Jo.Antioch., a qual figura no Conc. de
Éfeso, tom. I, cap. 19) escreveu: “É evidente que
permaneceu e permanece em nossa comunhão, e não consideramos destituído, aquele
que tenha sido excomungado ou privado do cargo, quer episcopal quer clerical,
pelo Bispo Nestório ou por outros que o seguem, depois que estes começaram a
pregar a heresia. Pois a sentença de quem já se revelou como devendo ser
deposto, a ninguém pode depor”.
E
em Carta ao Clero de Constantinopla, o Papa São Celestino I diz: “A
autoridade de nossa Sede Apostólica determinou que não seja considerado deposto
ou excomungado o Bispo, clérigo ou simples cristão que tenha sido deposto ou
excomungado por Nestório ou seus seguidores, depois que estes começaram a
pregar a heresia. Pois quem com tais pregações defeccionou na fé, não pode
depor ou remover a quem quer que seja”.
O
mesmo repete e confirma São Nicolau I (Epist. ad Michael).
Finalmente, também São Tomás ensina (S.Theol.,II-II,39,3) que os
cismáticos perdem imediatamente toda jurisdição, e que será nulo o que tentem
fazer com base em alguma jurisdição.
Não tem fundamento o que alguns a isso
respondem: que esses Padres se baseiam no Direito antigo, ao passo que atualmente,
pelo decreto do Concílio de Constança, só perdem a jurisdição os que são
nominalmente excomungados e os que agridem a clérigos. Esse argumento –
digo – não tem valor algum, pois aqueles Padres, afirmando que os hereges
perdem a jurisdição, não alegam Direito humano algum, que, aliás, naquela época
talvez não existisse sobre a matéria, mas argumentam com base na própria
natureza da heresia. O Concílio de Constança só trata dos excomungados,
isto é, dos que perderam a jurisdição por sentença da Igreja, ao passo
que os hereges já antes de serem excomungados estão fora da Igreja e
privados de toda jurisdição, pois já foram condenados por sua própria sentença,
como ensina o Apóstolo (Tit. 3, 10-11), isto é, foram cortados do corpo da
Igreja sem excomunhão, conforme explica São Jerônimo. Além disso, a segunda
afirmação de Caietano, de que o Papa herege pode ser verdadeira e
autoritativamente deposto pela Igreja, não é menos falsa do que a primeira.
Pois se a Igreja depõe o Papa contra a vontade deste, está certamente acima do
Papa; o próprio Caietano, entretanto, defende, no mesmo tratado, o contrário
disto. Caietano responde que a Igreja, depondo o Papa, não tem autoridade sobre
o Papa, mas apenas sobre o vínculo que une a pessoa ao Pontificado. Do mesmo modo
que a Igreja, unindo o Pontificado a tal pessoa, não está por isso acima do
Pontífice, assim também pode a Igreja separar o Pontificado de tal pessoa em
caso de heresia, sem que se diga estar acima do Pontífice.
Mas
contra isso se deve observar em primeiro lugar que, do fato de que o Papa depõe
Bispos, deduz-se que o Papa está acima de todos os Bispos, embora o Papa ao
depor um Bispo não destrua a jurisdição episcopal, mas apenas a separe daquela
pessoa. Em segundo lugar, depor alguém do Pontificado contra a vontade do
deposto, é sem dúvida uma pena; logo, a Igreja, ao depor um Papa contra a
vontade deste, sem dúvida o está punindo; ora, punir é próprio ao superior e ao
juiz. Em terceiro lugar, dado que, conforme Caietano e os demais tomistas, na
realidade o todo e as partes tomadas em seu conjunto são a mesma coisa, quem
tem autoridade sobre as partes tomadas em seu conjunto, podendo separá-las
entre si, tem também autoridade sobre o próprio todo constituído por aquelas
partes.
É ainda destituído de valor o exemplo
dos eleitores, dado por Caietano, os quais têm o poder de designar certa pessoa
para o Pontificado, sem terem contudo poder sobre o Papa. Pois, quando algo
está sendo feito, a ação se exerce sobre a matéria da coisa futura, e não sobre
o composto, que ainda não existe; mas quando a coisa está sendo destruída, a
ação se exerce sobre o composto, como se torna patente na consideração das
coisas da natureza. Portanto, ao criarem o Pontífice, os Cardeais não exercem
sua autoridade sobre o Pontífice, pois este ainda não existe, mas sobre a
matéria, isto é, sobre a pessoa que pela eleição tornam disposta para receber
de Deus o Pontificado. Mas se depusessem o Pontífice, necessariamente
exerceriam autoridade sobre o composto, isto é, sobre a pessoa dotada do poder
pontifício, isto é, sobre o Pontífice.
Logo,
a opinião verdadeira é a quinta, de acordo com a qual o Papa herege manifesto
deixa por si mesmo de ser Papa e cabeça, do mesmo modo que deixa por si mesmo
de ser cristão e membro do corpo da Igreja; e por isso pode ser julgado e
punido pela Igreja. Esta é a sentença de todos os antigos Padres, que
ensinam que os hereges manifestos perdem imediatamente toda jurisdição, e
nomeadamente de São Cipriano (lib. 4, epist. 2), o qual assim se
refere a Novaciano, que foi Papa (antipapa) no cisma havido durante o
Pontificado de São Cornélio: “Não poderia conservar o Episcopado, e, se foi
anteriormente feito Bispo, afastou-se do corpo dos que como ele eram Bispos e
da unidade da Igreja”. Segundo afirma São Cipriano nessa passagem, ainda
que Novaciano houvesse sido verdadeiro e legítimo Papa, teria contudo decaído
automaticamente do Pontificado caso se separasse da Igreja.
Esta
é a sentença de grandes doutores recentes, como João Driedo
(lib. 4 de Script. et dogmat. Eccles.
cap. 2, par. 2, sent. 2), o qual ensina que só se
separam da Igreja os que são expulsos, como os excomungados, e os que por si
próprios dela se afastam e a ela se opõem, como os hereges e os
cismáticos. E, na sua sétima afirmação, sustenta que naqueles que se
afastaram da Igreja, não resta absolutamente nenhum poder espiritual sobre os
que estão na Igreja. O mesmo diz Melchior Cano (lib. 4 de
loc., cap. 2), ensinando que os hereges não são partes nem membros da
Igreja, e que não se pode sequer conceber que alguém seja cabeça e Papa, sem
ser membro e parte (cap. ult. ad argument. 12). E ensina no mesmo local,
com palavras claras, que os hereges ocultos ainda são da Igreja, são
partes e membros, e que portanto o Papa herege oculto ainda é Papa. Essa é
também a sentença dos demais autores que citamos no livro 1 “De Eccles.”
O
fundamento desta sentença é que o herege manifesto não é de modo algum
membro da Igreja, isto é, nem espiritualmente nem corporalmente, o que
significa que não o é nem por união interna nem por união externa. Pois
mesmo os maus católicos estão unidos e são membros, espiritualmente
pela fé, corporalmente pela confissão da fé e pela participação nos sacramentos
visíveis; os hereges ocultos estão unidos e são membros, embora
apenas por união externa; pelo contrário, os catecúmenos bons
pertencem à Igreja apenas por uma união interna, não pela
externa; mas os hereges manifestos não pertencem de modo nenhum,
como já provamos.
(https://aciesordinata.wordpress.com/2009/08/10/textos-essenciais-em-traducao-inedita-xiv/)