terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

295ª Nota - Heresia e Perda do Ofício Papal


Pode parecer surpreendente para os católicos que aprenderam a doutrina da infalibilidade papal que um papa, como docente privado, possa, no entanto, cair em heresia e automaticamente perder seu ofício.

Para que não se pense que esse princípio é uma fantasia inventada por “fanáticos” tradicionalistas, ou, quando muito, apenas uma opinião minoritária exprimida por um ou dois autores católicos obscuros, reproduzimos alguns textos de Papas, Santos, canonistas e teólogos.

Os leitores leigos podem não estar familiarizados com os nomes de Coronata, Iragui, Badii, Prümmer, Wernz, Vidal, Beste, Vermeersch, Creusen e Regatillo. Esses sacerdotes foram autoridades internacionalmente reconhecidas em seus campos antes do Vaticano II. Nossas citações são tomadas de seus maciços tratados de Direito Canônico e Teologia Dogmática.

Matthaeus Conte a Coronata (1950) “III. Designação para o ofício do Primado [i.e. o Papado].
1.º O que é exigido por lei divina para essa designação: (a) É preciso que a designação seja de um homem que desfruta do uso da razão; e isto, no mínimo, devido à ordenação que o Primaz deve receber para possuir o poder de Ordens Sacras. De fato, isso é necessário para a validade da designação.
Também necessário para a validade é que a designação seja de um membro da Igreja. Os hereges e os apóstatas (ao menos os publicamente tais) ficam, portanto, excluídos.” …
“2.º Perda de ofício do Romano Pontífice. Isso pode acontecer de várias maneiras: …
c) Heresia notória. Certos autores negam a hipótese de que o Romano Pontífice possa de fato tornar-se herege.
Não se pode provar, contudo, que o Romano Pontífice, como doutor privado, não possa se tornar herege; por exemplo, caso ele negasse contumazmente um dogma anteriormente definido. Tal impecabilidade nunca foi prometida por Deus. Com efeito, o Papa Inocêncio III admite expressamente que um caso desses é possível.
Se de fato uma tal situação acontecesse, ele [o Romano Pontífice] cairia, por lei divina, do ofício sem sentença alguma, com efeito, sem nem mesmo uma sentença declaratória. Aquele que professa abertamente a heresia põe-se a si próprio fora da Igreja, e não é provável que Cristo fosse preservar o Primado de Sua Igreja em alguém tão indigno. Por isso, se o Romano Pontífice viesse a professar heresia, antes de toda e qualquer sentença condenatória (a qual seria impossível mesmo) ele perderia a autoridade dele.”
Institutiones Iuris Canonici, Roma: Marietti 1950. 1:312, 316.

Papa Inocêncio III (1198) “Para esse fim, a fé me é tão necessária que, embora eu tenha pelos demais pecados a Deus somente por meu juiz, é unicamente por pecado cometido contra a fé que eu posso ser julgado pela Igreja. Pois ‘aquele que não crê, já está julgado’.” Sermo 2: In Consecratione PL 218:656.
“Vós sois o sal da terra… Menos ainda pode gabar-se o Romano Pontífice, pois ele pode ser julgado pelos homens — ou melhor, ser mostrado como já julgado —, caso ele manifestamente ‘perca seu sabor’ na heresia. Pois quem não crê já está julgado.” Sermo 4: In Consecratione PL 218:670.

Santo Antonino (†1459) “No caso em que o papa se tornasse herege, ele se encontraria, por este único fato e sem qualquer sentença ulterior, separado da Igreja. Uma cabeça separada de um corpo não tem como, enquanto permanecer separada, ser cabeça do mesmo corpo do qual foi cortada.
Um papa que estivesse separado da Igreja por heresia, portanto, deixaria por esse próprio fato de ser o cabeça da Igreja. Ele não tem como ser herege e permanecer Papa, porque, estando fora da igreja, ele não pode possuir as chaves da Igreja.”
Summa Theologica, citada nas Atas do Vaticano I. V. Frond pub.

Papa Paulo IV (1559) “Ademais, se em algum tempo vier a suceder que algum bispo (mesmo um que atue como arcebispo, patriarca ou primaz), ou um cardeal da Igreja de Roma, ou um legado (como foi mencionado acima), ou mesmo um Romano Pontífice (quer seja antes de sua promoção a cardeal ou antes de sua eleição para ser o Romano Pontífice)  tivesse previamente se desviado da Fé Católica ou caído em alguma heresia, [Nós estipulamos, decretamos e definimos]:
— Tal promoção ou eleição é, por si mesma, ainda que com o acordo e o consentimento unânime de todos os cardeais, nula, legalmente inválida e sem nenhum efeito.
— Não será possível que uma tal promoção ou eleição venha a ser considerada válida ou a adquirir validez, nem pela recepção do ofício, consagração, subsequente administração, ou posse, nem sequer mediante a putativa entronização de um Romano Pontífice, juntamente da veneração e obediência a ele prestadas por todos.
— Tal promoção ou eleição não será, independentemente do tempo transcorrido na sobredita situação, considerada nem sequer parcialmente legítima, de modo algum….
— Todos e cada um dos pronunciamentos, atos, leis, nomeações por parte daqueles assim promovidos ou eleitos — e, de fato, tudo o que daí derivar, seja o que for — carecerá de vigor, e não outorgará nenhuma estabilidade nem poder legal nenhum a quem quer que seja.
— Aqueles assim promovidos ou eleitos, por esse fato mesmo e sem que haja necessidade de que seja feita qualquer declaração ulterior, estarão destituídos de toda e qualquer dignidade, posto, honra, título, autoridade, ofício e poder.”
Bula Cum ex Apostolatus Officio. 16 de fevereiro de 1559.

São Roberto Bellarmino (1610) “Um papa que é herege manifesto deixa automaticamente (per se) de ser papa e cabeça, assim como ele deixa automaticamente de ser cristão e membro da Igreja. Por isso, ele pode ser julgado e punido pela Igreja. Esse é o ensinamento de todos os antigos Padres, que ensinam que os hereges manifestos perdem imediatamente toda a jurisdição.” De Romano Pontifice. II.30.

Santo Afonso de Ligório (†1787) “Se acontecer de um papa, como pessoa privada, cair em heresia, ele de imediato cairia do pontificado.” Oeuvres Complètes. 9:232

Vaticano I (1869), Serapius Iragui (1959) “O que se diria se o Romano Pontífice se tornasse herege? No Primeiro Concílio do Vaticano, a seguinte questão foi proposta: o Romano Pontífice enquanto pessoa particular pode ou não pode cair em heresia manifesta?
A resposta foi então: ‘Firmemente confiantes na Providência sobrenatural, pensamos que tais coisas muito provavelmente jamais ocorrerão. Mas Deus não falha nos tempos de necessidade. Por isso, se Ele próprio permitisse um mal desses, os meios para lidar com ele não faltariam.’ [Mansi 52:1109]
Os teólogos respondem da mesma forma. Não podemos provar a improbabilidade absoluta de uma tal eventualidade [absolutam repugnantiam facti]. Por essa razão, os teólogos comumente concedem que o Romano Pontífice, se viesse a cair em heresia manifesta, deixaria de ser membro da Igreja e, por isso, não poderia tampouco ser chamado de seu cabeça visível.” Manuale Theologiae Dogmaticae. Madrid: Ediciones Studium 1959, 371.

J. Wilhelm (1913) “O próprio papa, se notoriamente culpado de heresia, deixaria de ser papa, porque deixaria de ser membro da Igreja.” Catholic Encyclopedia. New York: Encyclopedia Press 1913. 7:261.

Caesar Badii (1921) “c) A lei atualmente em vigor para a eleição do Romano Pontífice reduz-se a estes pontos: …
Excluídos como incapazes de ser validamente eleitos são os seguintes: mulheres, crianças que não chegaram à idade da razão, aqueles que sofrem de insanidade habitual, os não batizados, os hereges e cismáticos….”
Cessação do poder pontifício. Este poder cessa: … (d) Por heresia notória e amplamente divulgada. Um papa publicamente herege não mais seria membro da Igreja; por essa razão, ele não poderia mais ser sua cabeça.” Institutiones Iuris Canonici. Florença: Fiorentina 1921. 160, 165. (Grifos dele.)

Dominic Prümmer (1927) “O poder do Romano Pontífice perde-se: …
(c) Por insanidade perpétua ou por heresia formal. E isso no mínimo provavelmente…
Os autores, com efeito, ensinam comumente que um papa perde o seu poder por heresia certa e notória, mas se tem o direito de duvidar acerca de se este caso é ou não é realmente possível.
Baseando-se na suposição, todavia, de que um papa possa cair em heresia como pessoa particular (pois, como papa, ele não poderia errar na fé, pois seria infalível), vários autores elaboraram diferentes respostas acerca de como ele seria, então, privado de seu poder. Nenhuma das respostas, sem embargo, ultrapassa os limites da probabilidade.” Manuale Iuris Canonci. Fribourg in Briesgau: Herder 1927. 95. (Grifos dele.)

F.X. Wernz, P. Vidal (1943) “Por heresia notória e abertamente divulgada, o Romano Pontífice, se cair em heresia, por esse fato mesmo [ipso facto] é considerado privado de seu poder de jurisdição mesmo antes de qualquer sentença declaratória da Igreja…. Um Papa que cai em heresia pública deixaria ipso facto de ser membro da Igreja; logo, ele também deixaria de ser o cabeça da Igreja.” Ius Canonicum. Roma: Gregoriana 1943. 2:453.

Udalricus Beste (1946) “Não poucos canonistas ensinam que, fora da morte e da abdicação, a dignidade pontifícia pode ser perdida também caindo numa certa e insana alienação da mente, que é legalmente equivalente à morte, assim como por heresia manifesta e notória. Neste último caso, um papa cairia automaticamente de seu poder, e isso, com efeito, sem a emissão de nenhuma sentença, pois a primeira Sé [i.e., a Sé de Pedro] não é julgada por ninguém.
A razão disso é que, ao cair em heresia, o papa deixa de ser membro da Igreja. Aquele que não é membro de uma sociedade, obviamente, não tem como ser o cabeça dela. Não logramos encontrar exemplo algum disso na história.” Introductio in Codicem. 3.ª ed. Collegeville: St. John’s Abbey Press 1946. Cânon 221.

A. Vermeersch, I. Creusen (1949) “O poder do Romano Pontífice cessa por morte, livre renúncia (que é válida sem necessidade de qualquer aceitação, c. 221), certa e inquestionável insanidade perpétua, e heresia notória.
Ao menos conforme o ensinamento mais comum, o Romano Pontífice como mestre privado pode cair em heresia manifesta. Aí então, sem nenhuma sentença declaratória (pois a suprema Sé não é julgada por ninguém), ele automaticamente [ipso facto] cairia de um poder que todo aquele que deixou de ser membro da Igreja é incapaz de possuir.” Epitome Iuris Canonici. Roma: Dessain 1949. 340.

Eduardus F. Regatillo (1956) “O Romano Pontífice cessa no ofício:
… (4) Por heresia pública notória? Cinco respostas foram dadas:
“1. ‘O papa não tem como ser herege nem sequer como doutor privado.’ Isso é piedoso, mas existe pouco fundamento em seu favor.
“2. ‘O papa perde o ofício mesmo por heresia secreta.’ Falso, pois um herege secreto pode ser membro da Igreja.
“3. ‘O papa não perde o ofício por heresia pública.’ Improvável.
“4. ‘O papa perde o ofício por sentença judicial em razão de heresia pública.’ Mas quem proferiria a sentença? A primeira Sé não é julgada por ninguém (Cânon 1556).
“5. ‘O papa perde o ofício ipso facto em razão de heresia pública.’ Este é o ensinamento mais comum, pois ele não seria membro da Igreja e, assim, menos ainda poderia ser cabeça dela.” Institutiones Iuris Canonici. 5.ª ed. Santander: Sal Terrae, 1956. 1:396.
(Fragmento extraído do blogue Acies Ordinata – Padre Cekada, em “Os  Tradicionalistas, a Infalibilidade e o Papa”:

https://aciesordinata.wordpress.com/2012/10/31/textos-essenciais-em-traducao-inedita-clxx/)