Pode parecer surpreendente para os
católicos que aprenderam a doutrina da infalibilidade papal que um papa, como
docente privado, possa, no entanto, cair em heresia e automaticamente perder
seu ofício.
Para que não se pense que esse
princípio é uma fantasia inventada por “fanáticos” tradicionalistas, ou, quando
muito, apenas uma opinião minoritária exprimida por um ou dois autores
católicos obscuros, reproduzimos alguns textos de Papas, Santos, canonistas e
teólogos.
Os leitores leigos podem não estar
familiarizados com os nomes de Coronata, Iragui, Badii, Prümmer, Wernz, Vidal,
Beste, Vermeersch, Creusen e Regatillo. Esses sacerdotes foram autoridades
internacionalmente reconhecidas em seus campos antes do Vaticano II. Nossas
citações são tomadas de seus maciços tratados de Direito Canônico e Teologia
Dogmática.
Matthaeus Conte a Coronata (1950) “III.
Designação para o ofício do Primado [i.e. o Papado].
1.º O que é exigido por lei
divina para essa designação: (a) É preciso que a designação seja de um
homem que desfruta do uso da razão; e isto, no mínimo, devido à ordenação que o
Primaz deve receber para possuir o poder de Ordens Sacras. De fato, isso é
necessário para a validade da designação.
Também necessário para a validade é
que a designação seja de um membro da Igreja. Os hereges e os apóstatas (ao
menos os publicamente tais) ficam, portanto, excluídos.” …
“2.º Perda de ofício do Romano Pontífice. Isso pode acontecer de
várias maneiras: …
c) Heresia notória. Certos autores negam a hipótese de que o
Romano Pontífice possa de fato tornar-se herege.
Não se pode provar, contudo, que o
Romano Pontífice, como doutor privado, não possa se tornar herege; por exemplo,
caso ele negasse contumazmente um dogma anteriormente definido. Tal
impecabilidade nunca foi prometida por Deus. Com efeito, o Papa Inocêncio III
admite expressamente que um caso desses é possível.
Se de fato uma tal situação
acontecesse, ele [o Romano Pontífice] cairia, por lei divina, do
ofício sem sentença alguma, com efeito, sem nem mesmo uma sentença
declaratória. Aquele que professa abertamente a heresia põe-se a si próprio
fora da Igreja, e não é provável que Cristo fosse preservar o Primado de Sua
Igreja em alguém tão indigno. Por isso, se o Romano Pontífice viesse a
professar heresia, antes de toda e qualquer sentença condenatória (a qual seria
impossível mesmo) ele perderia a autoridade dele.”
Institutiones Iuris Canonici, Roma: Marietti 1950. 1:312, 316.
Institutiones Iuris Canonici, Roma: Marietti 1950. 1:312, 316.
Papa Inocêncio III (1198) “Para esse fim, a fé me é tão necessária que, embora eu tenha
pelos demais pecados a Deus somente por meu juiz, é unicamente por pecado
cometido contra a fé que eu posso ser julgado pela Igreja. Pois ‘aquele que não
crê, já está julgado’.” Sermo 2: In Consecratione PL 218:656.
“Vós sois o sal da terra… Menos ainda
pode gabar-se o Romano Pontífice, pois ele pode ser julgado pelos homens — ou
melhor, ser mostrado como já julgado —, caso ele manifestamente ‘perca seu
sabor’ na heresia. Pois quem não crê já está julgado.” Sermo 4: In
Consecratione PL 218:670.
Santo Antonino (†1459) “No caso em que o papa se tornasse herege, ele se encontraria, por
este único fato e sem qualquer sentença ulterior, separado da Igreja. Uma
cabeça separada de um corpo não tem como, enquanto permanecer separada, ser
cabeça do mesmo corpo do qual foi cortada.
Um papa que estivesse separado da
Igreja por heresia, portanto, deixaria por esse próprio fato de ser o cabeça da
Igreja. Ele não tem como ser herege e permanecer Papa, porque, estando fora da
igreja, ele não pode possuir as chaves da Igreja.”
Summa Theologica, citada nas Atas do Vaticano I. V. Frond pub.
Summa Theologica, citada nas Atas do Vaticano I. V. Frond pub.
Papa Paulo IV (1559) “Ademais, se em algum tempo vier a suceder que algum bispo (mesmo
um que atue como arcebispo, patriarca ou primaz), ou um cardeal da Igreja de
Roma, ou um legado (como foi mencionado acima), ou mesmo um Romano Pontífice
(quer seja antes de sua promoção a cardeal ou antes de sua eleição para ser o
Romano Pontífice) tivesse previamente se desviado da Fé Católica ou caído
em alguma heresia, [Nós estipulamos, decretamos e definimos]:
— Tal promoção ou eleição é, por si
mesma, ainda que com o acordo e o consentimento unânime de todos os cardeais,
nula, legalmente inválida e sem nenhum efeito.
— Não será possível que uma tal
promoção ou eleição venha a ser considerada válida ou a adquirir validez, nem
pela recepção do ofício, consagração, subsequente administração, ou posse, nem
sequer mediante a putativa entronização de um Romano Pontífice, juntamente da
veneração e obediência a ele prestadas por todos.
— Tal promoção ou eleição não será,
independentemente do tempo transcorrido na sobredita situação, considerada nem
sequer parcialmente legítima, de modo algum….
— Todos e cada um dos
pronunciamentos, atos, leis, nomeações por parte daqueles assim promovidos ou
eleitos — e, de fato, tudo o que daí derivar, seja o que for — carecerá de
vigor, e não outorgará nenhuma estabilidade nem poder legal nenhum a quem quer
que seja.
— Aqueles assim promovidos ou
eleitos, por esse fato mesmo e sem que haja necessidade de que seja feita
qualquer declaração ulterior, estarão destituídos de toda e qualquer dignidade,
posto, honra, título, autoridade, ofício e poder.”
Bula Cum ex Apostolatus Officio. 16 de fevereiro de 1559.
Bula Cum ex Apostolatus Officio. 16 de fevereiro de 1559.
São Roberto Bellarmino (1610) “Um papa que é herege manifesto deixa automaticamente (per se)
de ser papa e cabeça, assim como ele deixa automaticamente de ser cristão e
membro da Igreja. Por isso, ele pode ser julgado e punido pela Igreja. Esse é o
ensinamento de todos os antigos Padres, que ensinam que os hereges manifestos
perdem imediatamente toda a jurisdição.” De Romano Pontifice. II.30.
Santo Afonso de Ligório (†1787) “Se acontecer de um papa, como pessoa privada, cair em heresia,
ele de imediato cairia do pontificado.” Oeuvres Complètes. 9:232
Vaticano I (1869), Serapius Iragui
(1959) “O que se diria se o Romano Pontífice se
tornasse herege? No Primeiro Concílio do Vaticano, a seguinte questão foi
proposta: o Romano Pontífice enquanto pessoa particular pode ou não pode cair
em heresia manifesta?
A resposta foi então: ‘Firmemente
confiantes na Providência sobrenatural, pensamos que tais coisas muito
provavelmente jamais ocorrerão. Mas Deus não falha nos tempos de necessidade.
Por isso, se Ele próprio permitisse um mal desses, os meios para lidar com ele
não faltariam.’ [Mansi 52:1109]
Os teólogos respondem da mesma forma.
Não podemos provar a improbabilidade absoluta de uma tal eventualidade [absolutam
repugnantiam facti]. Por essa razão, os teólogos comumente concedem que o
Romano Pontífice, se viesse a cair em heresia manifesta, deixaria de ser membro
da Igreja e, por isso, não poderia tampouco ser chamado de seu cabeça
visível.” Manuale Theologiae Dogmaticae. Madrid: Ediciones Studium
1959, 371.
J. Wilhelm (1913) “O próprio papa, se notoriamente culpado de heresia, deixaria de
ser papa, porque deixaria de ser membro da Igreja.” Catholic
Encyclopedia. New York: Encyclopedia Press 1913. 7:261.
Caesar Badii (1921) “c) A lei atualmente em vigor para a eleição do Romano
Pontífice reduz-se a estes pontos: …
Excluídos como incapazes de
ser validamente eleitos são os seguintes: mulheres, crianças que não chegaram à
idade da razão, aqueles que sofrem de insanidade habitual, os não batizados, os
hereges e cismáticos….”
“Cessação do poder pontifício.
Este poder cessa: … (d) Por heresia notória e amplamente
divulgada. Um papa publicamente herege não mais seria membro da Igreja; por
essa razão, ele não poderia mais ser sua cabeça.” Institutiones Iuris
Canonici. Florença: Fiorentina 1921. 160, 165. (Grifos dele.)
Dominic Prümmer (1927) “O poder do Romano Pontífice perde-se: …
(c) Por insanidade perpétua
ou por heresia formal. E isso no mínimo provavelmente…
Os autores, com efeito, ensinam
comumente que um papa perde o seu poder por heresia certa e notória, mas se tem
o direito de duvidar acerca de se este caso é ou não é realmente possível.
Baseando-se na suposição, todavia, de
que um papa possa cair em heresia como pessoa particular (pois,
como papa, ele não poderia errar na fé, pois seria infalível), vários autores
elaboraram diferentes respostas acerca de como ele seria, então, privado de seu
poder. Nenhuma das respostas, sem embargo, ultrapassa os limites da
probabilidade.” Manuale Iuris Canonci. Fribourg in Briesgau: Herder
1927. 95. (Grifos dele.)
F.X. Wernz, P. Vidal (1943) “Por heresia notória e abertamente divulgada, o Romano Pontífice,
se cair em heresia, por esse fato mesmo [ipso facto] é considerado
privado de seu poder de jurisdição mesmo antes de qualquer
sentença declaratória da Igreja…. Um Papa que cai em heresia pública
deixaria ipso facto de ser membro da Igreja; logo, ele também
deixaria de ser o cabeça da Igreja.” Ius Canonicum. Roma:
Gregoriana 1943. 2:453.
Udalricus Beste (1946) “Não poucos canonistas ensinam que, fora da morte e da abdicação,
a dignidade pontifícia pode ser perdida também caindo numa certa e insana
alienação da mente, que é legalmente equivalente à morte, assim como por
heresia manifesta e notória. Neste último caso, um papa cairia automaticamente
de seu poder, e isso, com efeito, sem a emissão de nenhuma sentença, pois a
primeira Sé [i.e., a Sé de Pedro] não é julgada por ninguém.
A razão disso é que, ao cair em
heresia, o papa deixa de ser membro da Igreja. Aquele que não é membro de uma
sociedade, obviamente, não tem como ser o cabeça dela. Não logramos encontrar
exemplo algum disso na história.” Introductio in Codicem. 3.ª ed.
Collegeville: St. John’s Abbey Press 1946. Cânon 221.
A. Vermeersch, I. Creusen (1949) “O poder do Romano Pontífice cessa por morte, livre renúncia (que
é válida sem necessidade de qualquer aceitação, c. 221), certa e inquestionável
insanidade perpétua, e heresia notória.
Ao menos conforme o ensinamento mais
comum, o Romano Pontífice como mestre privado pode cair em heresia manifesta.
Aí então, sem nenhuma sentença declaratória (pois a suprema Sé não é julgada
por ninguém), ele automaticamente [ipso facto] cairia de um poder que
todo aquele que deixou de ser membro da Igreja é incapaz de possuir.” Epitome
Iuris Canonici. Roma: Dessain 1949. 340.
Eduardus F. Regatillo (1956) “O Romano Pontífice cessa no ofício:
… (4) Por heresia pública
notória? Cinco respostas foram dadas:
“1. ‘O papa não tem como ser herege
nem sequer como doutor privado.’ Isso é piedoso, mas existe pouco fundamento em
seu favor.
“2. ‘O papa perde o ofício mesmo por
heresia secreta.’ Falso, pois um herege secreto pode ser membro da Igreja.
“3. ‘O papa não perde o ofício por
heresia pública.’ Improvável.
“4. ‘O papa perde o ofício por
sentença judicial em razão de heresia pública.’ Mas quem proferiria a sentença?
A primeira Sé não é julgada por ninguém (Cânon 1556).
“5. ‘O papa perde o ofício ipso facto em razão de
heresia pública.’ Este é o ensinamento mais comum, pois ele não seria membro da
Igreja e, assim, menos ainda poderia ser cabeça dela.” Institutiones
Iuris Canonici. 5.ª ed. Santander: Sal Terrae, 1956. 1:396.
(Fragmento extraído do blogue Acies
Ordinata – Padre Cekada, em “Os
Tradicionalistas, a Infalibilidade e o Papa”:
https://aciesordinata.wordpress.com/2012/10/31/textos-essenciais-em-traducao-inedita-clxx/)