quinta-feira, 26 de outubro de 2017

334ª Nota - O Mecanismo Revolucionário e o Culto do Número


Governo do povo é uma expressão que tem significados totalmente diversos na linguagem da Igreja e na dos revolucionários.
A concepção católica de governo do povo conduz a uma estrutura de Estado informada e vivificada por uma sociedade orgânica e hierárquica.
A concepção revolucionária conduz a um Estado mecânico e onipotente, dominando e movendo a massa inumerável dos cidadãos anônimos e iguais.

(...) a Igreja - segundo os ensinamentos de Leão XIII - não é incompatível com qualquer das formas de governo: a monarquia, a aristocracia e a democracia. Entretanto, o conceito de democracia, nascido da Revolução Francesa, e fundado sobre os quatro grandes dogmas da soberania popular, da infalibilidade popular, da fidelidade absoluta ao sufrágio universal como expressão da vontade popular, e da organização da república democrática representativa universal, são incompatíveis com o pensamento da Igreja.

Um grande equívoco

Quando democratas à maneira de 1789 e católicos falam sobre “governo do povo”, há habitualmente entre eles dois graves equívocos, um sobre a palavra “governo”, e outro sobre a palavra “povo”. É devido a estes equívocos que a colaboração entre uns e outros tem visos de possibilidade. Quanto à palavra “governo”: para os católicos, todo o poder vem de Deus, paira acima dos súditos, e consiste em dirigir o povo; pelo contrário para os homens de 1789 o poder vem do povo, os súditos ditam sua vontade aos governantes, e governar não é dirigir a nação, mas fazer a vontade da massa.

Quanto à palavra “povo”, para a Igreja é a sociedade humana em que cada homem é dotado de convicções e princípios pessoais estáveis, lógicos, capazes de determinar duravelmente todo um estilo de vida e de ação; uma sociedade em que os grupos sociais, definidos e constituídos, são ricos de vida: uma sociedade em que as classes sociais são admitidas, reconhecidas, e hierarquizadas; uma sociedade enfim em que há elites de hereditariedade, de cultura, de capacidade, amadas, admiradas, reconhecidas, e classes populares vivendo na modesta mas profunda dignidade de sua condição a vida laboriosa, tranquila, farta, que compete a filhos de Deus. Pelo contrário, para os homens de 1789, o povo não é senão a “massa”, isto é, uma multidão anorgânica de pessoas todas iguais, todas anônimas, todas padronizadas, uniformizadas, estandardizadas, que vivem de um pensamento que não é individual, mas coletivo, que não procede das profundezas mentais de cada um, mas dos caprichos e das paixões da demagogia. Para os homens de 1789, “governo do povo” é governo da massa. Para os católicos, é a participação, na coisa pública, de uma sociedade orientada por elites.

Estabelecidas estas noções gerais, salientamos a justeza das observações do Santo Padre Pio XII sobre o sufrágio universal, mera contagem numérica de votos, em que as opiniões dos eleitores são tomadas em consideração apenas segundo sua quantidade, e que, pois, é muito mais adequado a exprimir a opinião da massa, do que o pensamento do verdadeiro povo.

O problema que a esta altura se põe é o seguinte: se, segundo a doutrina católica, “governo do povo” absolutamente não é o que entendem os homens de 1789 (“entendem”, dizemos, e não “entendiam”, pois hoje em dia há mais homens de 1789 do que em pleno terror, já que o número dos revolucionários não fez senão crescer continuamente), como existiria na ordem concreta dos fatos o que a Igreja entende por legítimo “governo do povo”?

Vida orgânica e unitarismo mecânico

Voltemos ao texto da alocução pontifícia. Lendo-a com atenção, veremos que Pio XII estabelece uma série de antíteses:
a — o mundo deve “libertar-se da engrenagem de um unitarismo mecânico”, para chegar a uma organização que “se harmonize com o conjunto das relações naturais, com a ordem normal e orgânica que rege as relações particulares dos homens e dos diversos povos”;
b — este “unitarismo mecânico” existe atualmente “no campo nacional e constitucional” sob a forma de um “culto cego do valor numérico”. Em outros termos, “o cidadão é eleitor. Mas, como tal, não é ele na realidade senão uma das unidades cujo total constitui uma maioria ou uma minoria que o simples deslocamento de algumas vozes, quando não de uma só, basta para inverter. Do ponto de vista dos partidos políticos, o eleitor não conta senão por seu poder eleitoral, pelo concurso que seu voto dá”. Pelo contrário, se deveria tomar em consideração também “sua situação, seu papel na família, e na profissão”, do que os atuais sistemas de voto absolutamente “não cogitam”;
c — Este “unitarismo mecânico” se manifesta “no campo econômico e social” no sentido de que “não há qualquer unidade orgânica natural entre os produtores”, e pelo contrário, “o utilitarismo quantitativo, a mera consideração do lucro é a única norma, que determina os lugares de produção e a distribuição do trabalho, desde que é a classe que distribui artificialmente os homens na sociedade e não mais a cooperação na comunidade profissional”;
d — “no campo cultural e moral”, em lugar de imperarem “os valores objetivos e sociais, a liberdade individual, desembaraçada de todos os liames, de todas as regras, de todos os valores objetivos e sociais, não é na realidade mais do que uma anarquia mortal, sobretudo na educação da juventude”;
e — na esfera internacional, é preciso evitar que penetrem na futura organização do mundo “os germes mortais do unitarismo mecânico”, e, pelo contrário, é necessário que essa organização “favoreça em toda a parte a vida própria de uma sadia comunidade humana, de uma sociedade cujos membros concorrem todos juntos para o bem da humanidade inteira”.

Liberdade cristã e mecanicismo revolucionário

Nestes contrastes, se delineiam com nitidez dois caminhos, um que se deve seguir, e outro que se deve evitar. Precisemos, por um confronto, ambas as linhas, situando o pensamento pontifício no quadro geral da doutrina tradicional.
I - Doutrina Católica: Os homens são naturalmente desiguais por seu valor intelectual e moral, por sua capacidade artística, por sua constituição física, pelas tradições de que vivem, pela educação que receberam, e por todas as pequenas particularidades individuais, de alma e de corpo, que resultam do que um ser tem de mais profundo e peculiar, e que caracterizam sua personalidade. Deste fato natural decorre a estrutura hierárquica da sociedade.
Pensamento Revolucionário: Nega a estrutura hierárquica da sociedade, e, em consequência, não toma em nenhuma consideração as desigualdades de alma e de corpo dos homens, bem como de suas características individuais. O Estado não conhece homens concretos, como são na vida e na realidade, mas homens em tese, homens em abstrato, homens apessoais e anônimos.
II - Doutrina Católica: Segundo a lógica dos fatos, a ordem natural das coisas, expressa através das mil e mil desigualdades legítimas existentes entre os homens, dá naturalmente origem a toda uma série de relações entre pessoas, famílias, grupos sociais, grupos econômicos ou profissionais, classes, que são produzidas pela própria realidade, e constituem o jogo fecundo das forças vivas da sociedade.
Pensamento Revolucionário: Tudo isto não é do conhecimento do Estado, e compete ao mero campo da atividade privada. A vida do Estado ignora todos estes fatos, e não os toma em qualquer consideração.
III - Doutrina Católica: A razão de ser do Estado consiste em manter esta vida na linha do Decálogo e do bem comum; em a favorecer de todas as formas; e, pois, em se modelar segundo for necessário para que esta vida siga seu curso, cada vez mais rica em seiva de realidade natural. Vicejam assim livremente as famílias, os grupos sociais, as classes sociais, os organismos que promovem a vida cultural, a caridade, etc. Não há uma lei estatal uniforme para todos. Cada qual se estrutura segundo o costume, as necessidades de cada dia, as circunstâncias históricas, etc. Estes organismos quase infinitamente diversificados entre si nas nações muito vastas e povoadas, devem ter oportunidade de intervir na vida pública, cada qual na medida de sua natureza, de seu papel histórico, da situação que ocupa no conjunto dos outros organismos.
Pensamento Revolucionário: O Estado não toma em consideração toda esta esfera de atividades, porque corre risco de as desnaturar deixando-se impregnar por ela. Este risco se torna mais premente no caso de se formarem grandes famílias, grandes instituições, grandes classes sociais que influenciem o Estado. Pelo que este, que em princípio não deveria conhecer de tais assuntos, intervém neles, para reduzir a seu controle as forças sociais. É o ponto de transição do liberalismo para o socialismo.
IV - Doutrina Católica: O Estado não pode escolher arbitrariamente sua forma de governo. Ele será monárquico, aristocrático ou democrático na medida em que a própria ordem natural das coisas produzir por uma lenta e gradual evolução histórica alguma destas formas.
Pensamento Revolucionário: O Estado deve ser sempre democrático, e dirigir a vida social de sorte que a constituição de aristocracias seja impossível.
V - Doutrina Católica: O modo porque as famílias, e demais grupos sociais intermediários, intervêm na vida política, é constituído aos poucos pela própria vida dos grupos e da sociedade do que por plano meramente teórico e pré-estabelecido.
Pensamento Revolucionário: A forma do Estado é o mecanismo teoricamente escolhido pelos pensadores de 1789. Não resulta da vida, mas de um plano de gabinete. Todo este plano deve ser executado pelas várias unidades sociais como as peças de um mecanismo desempenham o papel pré-estabelecido por quem as ordenou. Movem-se, não pela vida que há dentro delas, mas pelo movimento que lhes vem do Estado.
* * *
Entende-se por aí o que o Sumo Pontífice chama “mecânico”, e o que chama “vivos”. Resta saber qual a relação entre estes conceitos e o culto do número, de que nos fala em sua alocução.

O culto do número e o mecanicismo revolucionário

Número é uma palavra que supõe a noção de quantidade. Bem distinta desta é a noção de qualidade. O culto do número é o estabelecimento de uma ordem de coisas na qual a quantidade seja critério supremo. Evidentemente, tal ordem de coisas é profundamente distinta de outra em que se colocasse no devido realce o fator “qualidade”. Na concepção revolucionária, essencialmente igualitária, o fator qualidade é necessariamente prejudicado em favor da quantidade. Pois se todos são iguais devem ter a mesma cultura, a mesma educação, o mesmo padrão de vida, a mesma influência, o mesmo prestígio. E isto conduz forçosamente à ideia de dar mais valor à alfabetização do que à formação das elites; de tornar mais abundante a produção em lugar de a tornar também melhor; de padronizar e estandardizar tudo, segundo as conveniências do tipo abstrato de homem, ao qual todos se devem nivelar, não lhes sendo lícito ficar aquém ou além do modelo oficial.
Plínio de Oliveira