Governo do povo é uma expressão que tem
significados totalmente diversos na linguagem da Igreja e na dos
revolucionários.
A concepção católica de governo do povo
conduz a uma estrutura de Estado informada e vivificada por uma sociedade
orgânica e hierárquica.
A concepção revolucionária conduz a um
Estado mecânico e onipotente, dominando e movendo a massa inumerável dos
cidadãos anônimos e iguais.
(...) a Igreja - segundo os ensinamentos de Leão XIII - não é incompatível com qualquer das formas de governo: a monarquia, a aristocracia e a democracia. Entretanto, o conceito de democracia, nascido da Revolução Francesa, e fundado sobre os quatro grandes dogmas da soberania popular, da infalibilidade popular, da fidelidade absoluta ao sufrágio universal como expressão da vontade popular, e da organização da república democrática representativa universal, são incompatíveis com o pensamento da Igreja.
Um grande equívoco
Quando democratas à maneira de 1789 e
católicos falam sobre “governo do povo”, há habitualmente entre eles dois
graves equívocos, um sobre a palavra “governo”, e outro sobre a palavra “povo”.
É devido a estes equívocos que a colaboração entre uns e outros tem visos de
possibilidade. Quanto à palavra “governo”: para os católicos, todo o poder vem
de Deus, paira acima dos súditos, e consiste em dirigir o povo; pelo contrário
para os homens de 1789 o poder vem do povo, os súditos ditam sua vontade aos
governantes, e governar não é dirigir a nação, mas fazer a vontade da massa.
Quanto à palavra “povo”, para a Igreja é
a sociedade humana em que cada homem é dotado de convicções e princípios
pessoais estáveis, lógicos, capazes de determinar duravelmente todo um estilo
de vida e de ação; uma sociedade em que os grupos sociais, definidos e
constituídos, são ricos de vida: uma sociedade em que as classes sociais são
admitidas, reconhecidas, e hierarquizadas; uma sociedade enfim em que há elites
de hereditariedade, de cultura, de capacidade, amadas, admiradas, reconhecidas,
e classes populares vivendo na modesta mas profunda dignidade de sua condição a
vida laboriosa, tranquila, farta, que compete a filhos de Deus. Pelo contrário,
para os homens de 1789, o povo não é senão a “massa”, isto é, uma multidão
anorgânica de pessoas todas iguais, todas anônimas, todas padronizadas,
uniformizadas, estandardizadas, que vivem de um pensamento que não é
individual, mas coletivo, que não procede das profundezas mentais de cada um,
mas dos caprichos e das paixões da demagogia. Para os homens de 1789, “governo
do povo” é governo da massa. Para os católicos, é a participação, na coisa
pública, de uma sociedade orientada por elites.
Estabelecidas estas noções gerais,
salientamos a justeza das observações do Santo Padre Pio XII sobre o sufrágio
universal, mera contagem numérica de votos, em que as opiniões dos eleitores
são tomadas em consideração apenas segundo sua quantidade, e que, pois, é muito
mais adequado a exprimir a opinião da massa, do que o pensamento do verdadeiro
povo.
O problema que a esta altura se põe é o
seguinte: se, segundo a doutrina católica, “governo do povo” absolutamente não
é o que entendem os homens de 1789 (“entendem”, dizemos, e não “entendiam”,
pois hoje em dia há mais homens de 1789 do que em pleno terror, já que o número
dos revolucionários não fez senão crescer continuamente), como existiria na
ordem concreta dos fatos o que a Igreja entende por legítimo “governo do povo”?
Vida orgânica e unitarismo mecânico
Voltemos ao texto da alocução
pontifícia. Lendo-a com atenção, veremos que Pio XII estabelece uma série de
antíteses:
a — o mundo deve “libertar-se da
engrenagem de um unitarismo mecânico”, para chegar a uma organização que “se
harmonize com o conjunto das relações naturais, com a ordem normal e orgânica
que rege as relações particulares dos homens e dos diversos povos”;
b — este “unitarismo mecânico” existe
atualmente “no campo nacional e constitucional” sob a forma de um “culto cego
do valor numérico”. Em outros termos, “o cidadão é eleitor. Mas, como tal, não
é ele na realidade senão uma das unidades cujo total constitui uma maioria ou
uma minoria que o simples deslocamento de algumas vozes, quando não de uma só, basta
para inverter. Do ponto de vista dos partidos políticos, o eleitor não conta
senão por seu poder eleitoral, pelo concurso que seu voto dá”. Pelo contrário,
se deveria tomar em consideração também “sua situação, seu papel na família, e
na profissão”, do que os atuais sistemas de voto absolutamente “não cogitam”;
c — Este “unitarismo mecânico” se
manifesta “no campo econômico e social” no sentido de que “não há qualquer
unidade orgânica natural entre os produtores”, e pelo contrário, “o
utilitarismo quantitativo, a mera consideração do lucro é a única norma, que
determina os lugares de produção e a distribuição do trabalho, desde que é a
classe que distribui artificialmente os homens na sociedade e não mais a
cooperação na comunidade profissional”;
d — “no campo cultural e moral”, em
lugar de imperarem “os valores objetivos e sociais, a liberdade individual,
desembaraçada de todos os liames, de todas as regras, de todos os valores
objetivos e sociais, não é na realidade mais do que uma anarquia mortal, sobretudo
na educação da juventude”;
e — na esfera internacional, é preciso
evitar que penetrem na futura organização do mundo “os germes mortais do
unitarismo mecânico”, e, pelo contrário, é necessário que essa organização
“favoreça em toda a parte a vida própria de uma sadia comunidade humana, de uma
sociedade cujos membros concorrem todos juntos para o bem da humanidade
inteira”.
Liberdade cristã e mecanicismo
revolucionário
Nestes contrastes, se delineiam com
nitidez dois caminhos, um que se deve seguir, e outro que se deve evitar.
Precisemos, por um confronto, ambas as linhas, situando o pensamento pontifício
no quadro geral da doutrina tradicional.
I - Doutrina Católica: Os homens
são naturalmente desiguais por seu valor intelectual e moral, por sua capacidade
artística, por sua constituição física, pelas tradições de que vivem, pela
educação que receberam, e por todas as pequenas particularidades individuais,
de alma e de corpo, que resultam do que um ser tem de mais profundo e peculiar,
e que caracterizam sua personalidade. Deste fato natural decorre a estrutura
hierárquica da sociedade.
Pensamento Revolucionário:
Nega a estrutura hierárquica da sociedade, e, em consequência, não toma em
nenhuma consideração as desigualdades de alma e de corpo dos homens, bem como
de suas características individuais. O Estado não conhece homens concretos,
como são na vida e na realidade, mas homens em tese, homens em abstrato, homens
apessoais e anônimos.
II - Doutrina Católica: Segundo
a lógica dos fatos, a ordem natural das coisas, expressa através das mil e mil
desigualdades legítimas existentes entre os homens, dá naturalmente origem a
toda uma série de relações entre pessoas, famílias, grupos sociais, grupos
econômicos ou profissionais, classes, que são produzidas pela própria
realidade, e constituem o jogo fecundo das forças vivas da sociedade.
Pensamento Revolucionário:
Tudo isto não é do conhecimento do Estado, e compete ao mero campo da atividade
privada. A vida do Estado ignora todos estes fatos, e não os toma em qualquer
consideração.
III - Doutrina Católica: A
razão de ser do Estado consiste em manter esta vida na linha do Decálogo e do
bem comum; em a favorecer de todas as formas; e, pois, em se modelar segundo
for necessário para que esta vida siga seu curso, cada vez mais rica em seiva
de realidade natural. Vicejam assim livremente as famílias, os grupos sociais,
as classes sociais, os organismos que promovem a vida cultural, a caridade,
etc. Não há uma lei estatal uniforme para todos. Cada qual se estrutura segundo
o costume, as necessidades de cada dia, as circunstâncias históricas, etc.
Estes organismos quase infinitamente diversificados entre si nas nações muito
vastas e povoadas, devem ter oportunidade de intervir na vida pública, cada
qual na medida de sua natureza, de seu papel histórico, da situação que ocupa
no conjunto dos outros organismos.
Pensamento Revolucionário:
O Estado não toma em consideração toda esta esfera de atividades, porque corre
risco de as desnaturar deixando-se impregnar por ela. Este risco se torna mais
premente no caso de se formarem grandes famílias, grandes instituições, grandes
classes sociais que influenciem o Estado. Pelo que este, que em princípio não
deveria conhecer de tais assuntos, intervém neles, para reduzir a seu controle
as forças sociais. É o ponto de transição do liberalismo para o socialismo.
IV - Doutrina Católica: O
Estado não pode escolher arbitrariamente sua forma de governo. Ele será
monárquico, aristocrático ou democrático na medida em que a própria ordem
natural das coisas produzir por uma lenta e gradual evolução histórica alguma
destas formas.
Pensamento Revolucionário:
O Estado deve ser sempre democrático, e dirigir a vida social de sorte que a
constituição de aristocracias seja impossível.
V - Doutrina Católica: O modo
porque as famílias, e demais grupos sociais intermediários, intervêm na vida
política, é constituído aos poucos pela própria vida dos grupos e da sociedade
do que por plano meramente teórico e pré-estabelecido.
Pensamento Revolucionário:
A forma do Estado é o mecanismo teoricamente escolhido pelos pensadores de
1789. Não resulta da vida, mas de um plano de gabinete. Todo este plano deve
ser executado pelas várias unidades sociais como as peças de um mecanismo
desempenham o papel pré-estabelecido por quem as ordenou. Movem-se, não pela
vida que há dentro delas, mas pelo movimento que lhes vem do Estado.
* * *
Entende-se por aí o que o Sumo Pontífice
chama “mecânico”, e o que chama “vivos”. Resta saber qual a relação entre estes
conceitos e o culto do número, de que nos fala em sua alocução.
O culto do número e o mecanicismo
revolucionário
Número é uma palavra que supõe a noção
de quantidade. Bem distinta desta é a noção de qualidade. O culto do número é o
estabelecimento de uma ordem de coisas na qual a quantidade seja critério
supremo. Evidentemente, tal ordem de coisas é profundamente distinta de outra
em que se colocasse no devido realce o fator “qualidade”. Na concepção
revolucionária, essencialmente igualitária, o fator qualidade é necessariamente
prejudicado em favor da quantidade. Pois se todos são iguais devem ter a mesma
cultura, a mesma educação, o mesmo padrão de vida, a mesma influência, o mesmo
prestígio. E isto conduz forçosamente à ideia de dar mais valor à alfabetização
do que à formação das elites; de tornar mais abundante a produção em lugar de a
tornar também melhor; de padronizar e estandardizar tudo, segundo as
conveniências do tipo abstrato de homem, ao qual todos se devem nivelar, não
lhes sendo lícito ficar aquém ou além do modelo oficial.
Plínio de Oliveira