quinta-feira, 12 de maio de 2016

187ª Nota - Sobre a jurisdição no estado atual da Igreja



Atualmente, um pequeno grupo de pessoas, fundamentando-se em não poucos textos, chega a uma dramática conclusão: “nenhum sacerdote ou bispo (católico) tem jurisdição, por força da ausência de um Papa e da hierarquia na Igreja. [Até aqui a afirmação é exata]. Por isso, eles não podem dizer a missa publicamente, e nós estamos proibidos de assistir a ela. [Aqui é onde se encontra o erro.]

Este grupo de fiéis pretende viver sem os sacramentos (que permitem, sem embargo, a santificação e a vida de nossa alma) com o pretexto de que não há mais sacerdócio. Em outras palavras, atualmente, “já não há verdadeiros sacerdotes e bispos, portanto, tampouco missa e sacramentos na terra”. Esta posição logo se contradiz e se aniquila com a promessa de Nosso Senhor, que nos disse: “Eu estarei convosco para sempre, até o fim dos séculos”.

Este pequeno grupo de pessoas, para chegar a sua conclusão errônea, baseia-se essencialmente nos textos de leis (eclesiásticas) do Direito Canônico. Tal e como veremos, esta gente se apóia no sentido literal, porém, não no espírito. Não obstante, São Paulo nos ensina que “o sentido literal mata e o espírito vivifica”.

Na situação atual, onde tudo está em desordem, a Igreja, Mãe das almas, preocupada pela misericórdia e atenta à situação dramática em que vivemos, não tem as mesmas intransigências. Hoje, as regras exclusivamente eclesiásticas que vão contra o fim a que aspiram (v.g., a necessidade de um mandato romano para uma consagração) já não se podem aplicar e não têm mais força executória (não são aplicáveis) em razão da situação inédita e extraordinária da Igreja. Ademais, inclusive em tempos normais, o não respeito destas regras eclesiásticas (necessárias e lógicas para preservar o bom funcionamento e a ordem da instituição humana da Igreja e para que se respeite a hierarquia da Igreja e a primazia do Papa) não impediam a validez própria de um sacramento.

Para explicar a virtude da Epiquéia (que ensinou Santo Tomás de Aquino), Mons. Guérard punha este exemplo: “Cada dia, uma mãe ordenava a sua filha maior: ‘não toque em seu irmãozinho, bebê, até que eu volte das compras’. A filha respeitava fielmente esta ordem. Porém, um dia, ao regressar a mãe, a filha foi ao seu encontro com o bebê em seu colo. Ela havia desobedecido? Sem embargo, existia uma razão: a casa estava incendiando.”

A atitude destes fiéis que rechaçam os sacramentos inteiramente válidos, puros e completamente católicos, demonstram-nos uma grande ignorância da religião, da vida da Igreja, de sua história. Viver com o Código de Direito Canônico na mão como única fonte é totalmente estúpido e completamente infrutífero.

Eles têm um falso conceito do que é a Igreja. Imaginam-na como uma instituição rígida e severa. A história nos demonstra o contrário: as leis eclesiásticas se adaptaram, se reforçaram e se completaram, segundo as necessidades da Igreja e da santificação das almas.

Não imitemos aos fariseus que seguiam a lei ao pé da letra em detrimento da salvação das almas. Isto é o que os perdeu! No Evangelho temos um magnífico exemplo da conduta que devemos ter com respeito à lei humana.

Como podemos ler no Evangelho segundo São Lucas (Luc. 14), se um burro caísse em um poço no dia de sábado, estava proibido tirá-lo dali, pois a lei impedia. Tratava-se de seguir o espírito do sentido literal, condenado por São Paulo. Pois bem, Nosso Senhor nos disse que, apesar da lei, devemos retirar o burro do poço, já que há uma necessidade e se trata simplesmente de bom senso.

Rechaçar os sacramentos e não assistir à Santa Missa, com o pretexto de que o sacerdote (católico, ordenado validamente por um bispo) não tem poder de jurisdição (é impossível tê-la hoje, pois que não há um Papa nem hierarquia) é seguir o espírito dos fariseus. Que grave erro! Isto é suicídio! Equivale a permanecer na casa que incendeia, em lugar de sair, com o pretexto de que uma lei o proíbe!

Isto é o que disse o padre Grossin: “Quando a casa incendeia, não pedimos permissão ao nosso vizinho para tomar a sua água. Assim, também, devemos compreender que, na situação atual, as regras estritas da Igreja não são rígidas. Não fazer nada e ficar olhando os meninos que se queimam na casa sem tentar apagar o fogo é criminoso. Dirão alguns que eles não tinham o direito de roubar a água do vizinho para apagar o fogo. E, portanto, estão isentos de todo o pecado! Agora, aqueles que roubaram a água do vizinho para salvar a vida de outras pessoas são abomináveis pecadores... Isto mais se parece com um raciocínio farisaico, que não quer salvar o seu próximo em um dia de sábado. Não fazer nada, é condenar as almas a privação dos sacramentos, que são os canais da graça. [...] As questões sutis do Direito Canônico não levam em conta a nossa extraordinária situação atual, não prevista pelo próprio Direito Canônico. Atrever-se a dar argumentos canônicos, válidos quando a Igreja está em ordem, com uma autoridade de tribunais, da prova de um legalismo fariseu e mortal.”
Conclusão
Pelas razões anteriores, podemos auferir que é absurdo, suicida e criminoso rechaçar os sacramentos válidos (non uma cum) com o pretexto de que os sacerdotes e os bispos não tem mais poder de jurisdição em virtude da ausência de Papa e da hierarquia na Igreja. É absurdo, suicida e criminoso querer impedir os fiéis o acesso aos sacramentos segundo as razões explicadas. É absurdo, suicida e criminoso se opor ao reconhecimento dos bispos católicos non una cum com o pretexto de que foram consagrados sem mandato apostólico. Trata-se de um espírito não católico. Porém, isto não é em si surpreendente: estes fiéis, ao não haver recebido o sacramento da Confirmação, sacramento que outorga os sete dons do Espírito Santo, estão cegos... Oremos por eles!
***
Resposta a algumas objeções:
Primeira: Em face disto, algumas pessoas pensam refutar a nossa posição, colocando-nos em uma armadilha, quando fazem maliciosamente esta pergunta: “A Epiquéia pode permitir o que está proibido pelo Santo Concílio de Trento (Sessão XXIII, cânon VII) e pelo Denzinger 967?”

Resposta do padre Grossin: “Epiquéia não autoriza aquilo que está proibido. A Epiquéia tem em conta as circunstâncias concretas que a lei não previu com todos os seus detalhes. Pois bem, em nossa situação atual, os sacerdotes católicos non una cum não afirmam que têm jurisdição. Estamos todos de acordo em dizer que não temos jurisdição ordinária. Não afirmamos ter sido enviados por uma autoridade que já não existe! Nós não viemos do outro lado, como o proíbe o Concílio de Trento; mantemos os sacramentos válidos, não partimos em missão. Esta batalha de sobrevivência, para retomar a expressão de Jean Vaquié, respeita a intenção e o espírito dos Padres do Concílio de Trento quando escreveram seu texto. Naquele momento, queriam proteger a fé e os sacramentos íntegros contra os protestantes. É isto o que fazemos com os poucos meios que nós temos.”

Segunda: “Para absolver, é absolutamente necessário que o sacerdote tenha o poder de jurisdição. Trata-se, com efeito, de uma lei de direito divino que não se pode permitir a Epiquéia.”

De fato, uma lei de direito divino não pode ser transgredida, não permitindo a Epiquéia. O padre Belmont explica em um artigo que a jurisdição tem que ser de direito divino para absolver. Porém, o direito da Igreja nos assegura formalmente que, em caso de erro comum ou de perigo de morte, a Igreja supre a jurisdição (isto é, dá jurisdição). Santo Afonso admite – e com ele a Igreja, que atribui uma autoridade muito particular em sua opinião sobre estes temas – que é similar ao caso de perigo de morte o dos prisioneiros (não necessariamente condenados à morte), aos quais, para confessá-los, encontrariam unicamente sacerdotes sem jurisdição. O caso em que nos encontramos, não é deste tipo?

Padre Belmont: “A situação trágica da Santa Igreja – ausência de autoridade pontifícia, colonização das estruturas da Santa Igreja por uma religião herege e sacrílega, escassez de sacerdotes – e os grandes perigos do mundo moderno para as almas: isto constitui objetivamente uma grave necessidade na qual a suplência da Igreja valida a absolvição que dá um verdadeiro sacerdote. No ato mesmo da absolvição, Jesus Cristo e sua Igreja suprem a jurisdição que falta. Ademais, isto é verdadeiro também quando o padre e o penitente se equivocam quanto à existência ou à gravidade ou à natureza da crise: o fundamento da necessária suplência não está em seu juízo (verdadeiro ou falso), mas na realidade objetiva.”

O demônio, inimigo incansável dos sacramentos, é muito hábil para encontrar argumentos “com uma boa aparência”, visando a que uma pequena quantidade de sacerdotes e bispos católicos féis deixem de celebrar a santa Missa e de dar os sacramentos.

Resumo do Padre Ricossa sobre a jurisdição:

a) Na Igreja existe o poder de ordem e jurisdição.
b) Estes dois poderes, embora intimamente unidos por uma relação mútua e que normalmente devem ser exercidos conjuntamente, são realmente distintos e podem excepcionalmente se exercer de maneira separada. 
c) A Sé Apostólica está atualmente vacante. 
d) Como a Sé está formalmente vacante, resulta que, ao não haver Papa, que é a fonte da jurisdição eclesiástica (e também o resto da hierarquia, que goza da jurisdição ordinária ou delegada, não há ninguém que seja depositário de uma jurisdição ordinária, delegada ou suplente por direito, não somente entre os fieis do Vaticano II, senão também entre seus opositores).
e) O poder de ordem (pela glória de Deus com o oferecimento do Sacrifício e a salvação das almas, a administração dos sacramentos, a evangelização, etc.) não pode nem deve desaparecer; portanto, pode ser exercido inclusive por sacerdotes privados do poder de jurisdição, segundo o rito tradicional da Igreja. Negar este ponto leva a negar a continuidade da Igreja tal e como foi concebida por Cristo. Os bispos consagrados com este fim não gozam do poder de jurisdição, gozam unicamente do poder de ordem.
f) Podemos admitir que os bispos e sacerdotes que exercem desta maneira o poder de ordem recebem de Cristo — per modum actus, a saber, de maneira transitória e para cada ato sacramental realizado de forma singular — um poder de jurisdição de suplência. Isto vale principalmente para o sacramento da penitência, pelo qual a jurisdição é necessária não somente de direito eclesiástico, senão também de direito divino, pela própria natureza do sacramento.
g) Porém, esta jurisdição suplente supõe que foi outorgada unicamente para estes atos que têm um fundamento no poder da ordem (ou para aquilo que é absolutamente indispensável para a continuidade da Igreja e não para os atos de jurisdição pura em si, que, por outro lado, não tem nenhum fundamento para receber esta jurisdição). 
Por isso, é possível admitir uma suplência da parte de Cristo. Sem embargo, negamos que seja possível admitir tal suplência se reconhecermos em atos a autoridade de João Paulo II (Bento XVI e Francisco) (Cristo atuaria sempre por intermédio de seu Vigário e jamais sem ele) e negamos, inclusive na hipótese da vacância da Sé Apostólica, que Cristo possa dar autoridade a organismos jurisdicionais compostos de pessoas privadas e desprovidas de toda a autoridade, inclusive material (como as comissões canônicas da Fraternidade ou os conclaves de sedevacantistas).

Fonte: Sodalitium, n.° 51, p. 49.