Atualmente, um pequeno grupo de pessoas,
fundamentando-se em não poucos textos, chega a uma dramática conclusão:
“nenhum sacerdote ou bispo (católico) tem jurisdição, por força da ausência de
um Papa e da hierarquia na Igreja. [Até aqui a afirmação é exata]. Por isso,
eles não podem dizer a missa publicamente, e nós estamos proibidos de assistir a
ela. [Aqui é onde se encontra o erro.]
Este grupo de fiéis pretende viver sem
os sacramentos (que permitem, sem embargo, a santificação e a vida de nossa
alma) com o pretexto de que não há mais sacerdócio. Em outras palavras,
atualmente, “já não há verdadeiros sacerdotes e bispos, portanto, tampouco
missa e sacramentos na terra”. Esta posição logo se contradiz e se aniquila com
a promessa de Nosso Senhor, que nos disse: “Eu estarei convosco para sempre,
até o fim dos séculos”.
Este pequeno grupo de pessoas, para
chegar a sua conclusão errônea, baseia-se essencialmente nos textos de leis
(eclesiásticas) do Direito Canônico. Tal e como veremos, esta gente se apóia no
sentido literal, porém, não no espírito. Não obstante, São Paulo nos ensina que
“o sentido literal mata e o espírito vivifica”.
Na situação atual, onde tudo está em
desordem, a Igreja, Mãe das almas, preocupada pela misericórdia e atenta à
situação dramática em que vivemos, não tem as mesmas intransigências. Hoje, as
regras exclusivamente eclesiásticas que vão contra o fim a que aspiram (v.g., a
necessidade de um mandato romano para uma consagração) já não se podem aplicar
e não têm mais força executória (não são aplicáveis) em razão da situação
inédita e extraordinária da Igreja. Ademais, inclusive em tempos normais, o não
respeito destas regras eclesiásticas (necessárias e lógicas para preservar o
bom funcionamento e a ordem da instituição humana da Igreja e para que se
respeite a hierarquia da Igreja e a primazia do Papa) não impediam a validez
própria de um sacramento.
Para explicar a virtude da Epiquéia (que
ensinou Santo Tomás de Aquino), Mons. Guérard punha este exemplo: “Cada dia, uma mãe ordenava a sua filha
maior: ‘não toque em seu irmãozinho, bebê, até que eu volte das compras’. A
filha respeitava fielmente esta ordem. Porém, um dia, ao regressar a mãe, a
filha foi ao seu encontro com o bebê em seu colo. Ela havia desobedecido? Sem
embargo, existia uma razão: a casa estava incendiando.”
A atitude destes fiéis que rechaçam os
sacramentos inteiramente válidos, puros e completamente católicos,
demonstram-nos uma grande ignorância da religião, da vida da Igreja, de sua
história. Viver com o Código de Direito Canônico na mão como única fonte é
totalmente estúpido e completamente infrutífero.
Eles têm um falso conceito do que é a
Igreja. Imaginam-na como uma instituição rígida e severa. A história nos
demonstra o contrário: as leis eclesiásticas se adaptaram, se reforçaram e se completaram,
segundo as necessidades da Igreja e da santificação das almas.
Não imitemos aos fariseus que seguiam a
lei ao pé da letra em detrimento da salvação das almas. Isto é o que os perdeu!
No Evangelho temos um magnífico exemplo da conduta que devemos ter com respeito
à lei humana.
Como podemos ler no Evangelho segundo
São Lucas (Luc. 14), se um burro caísse em um poço no dia de sábado, estava
proibido tirá-lo dali, pois a lei impedia. Tratava-se de seguir o espírito do
sentido literal, condenado por São Paulo. Pois bem, Nosso Senhor nos disse que, apesar da lei, devemos retirar o burro do poço, já que há
uma necessidade e se trata simplesmente de bom senso.
Rechaçar os sacramentos e não assistir à
Santa Missa, com o pretexto de que o sacerdote (católico, ordenado validamente
por um bispo) não tem poder de jurisdição (é impossível tê-la hoje, pois que
não há um Papa nem hierarquia) é seguir o espírito dos fariseus. Que grave
erro! Isto é suicídio! Equivale a permanecer na casa que incendeia, em lugar de
sair, com o pretexto de que uma lei o proíbe!
Isto
é o que disse o padre Grossin: “Quando a casa incendeia, não pedimos permissão ao
nosso vizinho para tomar a sua água. Assim, também, devemos compreender que, na
situação atual, as regras estritas da Igreja não são rígidas. Não fazer nada e
ficar olhando os meninos que se queimam na casa sem tentar apagar o fogo é
criminoso. Dirão alguns que eles não tinham o direito de roubar a água do
vizinho para apagar o fogo. E, portanto, estão isentos de todo o pecado! Agora,
aqueles que roubaram a água do vizinho para salvar a vida de outras pessoas são
abomináveis pecadores... Isto mais se parece com um raciocínio farisaico,
que não quer salvar o seu próximo em um dia de sábado. Não fazer nada, é
condenar as almas a privação dos sacramentos, que são os canais da graça. [...]
As questões sutis do Direito Canônico não levam em conta a nossa extraordinária
situação atual, não prevista pelo próprio Direito Canônico. Atrever-se a dar
argumentos canônicos, válidos quando a Igreja está em ordem, com uma autoridade
de tribunais, da prova de um legalismo fariseu e mortal.”
Conclusão
Pelas
razões anteriores, podemos auferir que é absurdo, suicida e criminoso rechaçar
os sacramentos válidos (non uma cum) com o pretexto de que
os sacerdotes e os bispos não tem mais poder de jurisdição em virtude da
ausência de Papa e da hierarquia na Igreja. É absurdo, suicida e criminoso
querer impedir os fiéis o acesso aos sacramentos segundo as razões explicadas.
É absurdo, suicida e criminoso se opor ao reconhecimento dos bispos católicos non
una cum com o pretexto de que foram consagrados sem mandato apostólico.
Trata-se de um espírito não católico. Porém, isto não é em si surpreendente:
estes fiéis, ao não haver recebido o sacramento da Confirmação, sacramento que
outorga os sete dons do Espírito Santo, estão cegos... Oremos por eles!
***
Resposta a algumas objeções:
Primeira:
Em face disto, algumas pessoas pensam refutar a nossa posição, colocando-nos em
uma armadilha, quando fazem maliciosamente esta pergunta: “A Epiquéia pode
permitir o que está proibido pelo Santo Concílio de Trento (Sessão XXIII, cânon
VII) e pelo Denzinger 967?”
Resposta do padre Grossin: “Epiquéia não
autoriza aquilo que está proibido. A Epiquéia tem em conta as circunstâncias
concretas que a lei não previu com todos os seus detalhes. Pois bem, em nossa
situação atual, os sacerdotes católicos non una cum não afirmam que têm
jurisdição. Estamos todos de acordo em dizer que não temos jurisdição
ordinária. Não afirmamos ter sido enviados por uma autoridade que já não
existe! Nós não viemos do outro lado, como o proíbe o Concílio de Trento;
mantemos os sacramentos válidos, não partimos em missão. Esta batalha de
sobrevivência, para retomar a expressão de Jean Vaquié, respeita a intenção e o
espírito dos Padres do Concílio de Trento quando escreveram seu texto. Naquele momento,
queriam proteger a fé e os sacramentos íntegros contra os protestantes. É isto
o que fazemos com os poucos meios que nós temos.”
Segunda:
“Para absolver, é absolutamente necessário que o sacerdote tenha o poder de
jurisdição. Trata-se, com efeito, de uma lei de direito divino que não se pode
permitir a Epiquéia.”
De fato, uma lei de direito divino não
pode ser transgredida, não permitindo a Epiquéia. O padre Belmont explica em um
artigo que a jurisdição tem que ser de direito divino para absolver. Porém, o
direito da Igreja nos assegura formalmente que, em caso de erro comum ou de
perigo de morte, a Igreja supre a jurisdição (isto é, dá jurisdição). Santo
Afonso admite – e com ele a Igreja, que atribui uma autoridade muito particular
em sua opinião sobre estes temas – que é similar ao caso de perigo de morte o
dos prisioneiros (não necessariamente condenados à morte), aos quais, para
confessá-los, encontrariam unicamente sacerdotes sem jurisdição. O caso em que
nos encontramos, não é deste tipo?
Padre Belmont: “A situação trágica da
Santa Igreja – ausência de autoridade pontifícia, colonização das estruturas da
Santa Igreja por uma religião herege e sacrílega, escassez de sacerdotes – e os
grandes perigos do mundo moderno para as almas: isto constitui objetivamente
uma grave necessidade na qual a suplência da Igreja valida a absolvição que dá
um verdadeiro sacerdote. No ato mesmo da absolvição, Jesus Cristo e sua Igreja
suprem a jurisdição que falta. Ademais, isto é verdadeiro também quando o padre
e o penitente se equivocam quanto à existência ou à gravidade ou à natureza da
crise: o fundamento da necessária suplência não está em seu juízo (verdadeiro
ou falso), mas na realidade objetiva.”
O demônio, inimigo incansável dos
sacramentos, é muito hábil para encontrar argumentos “com uma boa aparência”,
visando a que uma pequena quantidade de sacerdotes e bispos católicos féis
deixem de celebrar a santa Missa e de dar os sacramentos.
Resumo do Padre Ricossa sobre a
jurisdição:
a) Na Igreja existe o poder de ordem e
jurisdição.
b) Estes dois poderes, embora
intimamente unidos por uma relação mútua e que normalmente devem ser exercidos
conjuntamente, são realmente distintos e podem excepcionalmente se exercer de
maneira separada.
c) A Sé Apostólica está atualmente
vacante.
d) Como a Sé está formalmente vacante,
resulta que, ao não haver Papa, que é a fonte da jurisdição eclesiástica
(e também o resto da hierarquia, que goza da jurisdição ordinária ou delegada, não há ninguém que seja depositário de uma jurisdição ordinária, delegada ou
suplente por direito, não somente entre os fieis do Vaticano II, senão também
entre seus opositores).
e) O poder de ordem (pela glória de
Deus com o oferecimento do Sacrifício e a salvação das almas, a administração
dos sacramentos, a evangelização, etc.) não pode nem deve desaparecer;
portanto, pode ser exercido inclusive por sacerdotes privados do poder de
jurisdição, segundo o rito tradicional da Igreja. Negar este ponto leva a negar
a continuidade da Igreja tal e como foi concebida por Cristo. Os bispos
consagrados com este fim não gozam do poder de jurisdição, gozam unicamente do
poder de ordem.
f) Podemos admitir que os bispos e
sacerdotes que exercem desta maneira o poder de ordem recebem de Cristo — per modum actus, a saber, de maneira
transitória e para cada ato sacramental realizado de forma singular — um
poder de jurisdição de suplência. Isto vale principalmente para o sacramento da
penitência, pelo qual a jurisdição é necessária não somente de direito
eclesiástico, senão também de direito divino, pela própria natureza do
sacramento.
g) Porém, esta jurisdição suplente supõe
que foi outorgada unicamente para estes atos que têm um fundamento no poder da
ordem (ou para aquilo que é absolutamente indispensável para a continuidade da
Igreja e não para os atos de jurisdição pura em si, que, por outro lado, não
tem nenhum fundamento para receber esta jurisdição).
Por
isso, é possível admitir uma suplência da parte de Cristo. Sem embargo, negamos
que seja possível admitir tal suplência se reconhecermos em atos a autoridade
de João Paulo II (Bento XVI e Francisco) (Cristo atuaria sempre por intermédio
de seu Vigário e jamais sem ele) e negamos, inclusive na hipótese da vacância
da Sé Apostólica, que Cristo possa dar autoridade a organismos jurisdicionais
compostos de pessoas privadas e desprovidas de toda a autoridade, inclusive
material (como as comissões canônicas da Fraternidade ou os conclaves de sedevacantistas).
Fonte:
Sodalitium, n.° 51, p. 49.