quinta-feira, 5 de maio de 2016

183ª Nota - O perigo do pragmatismo sociológico




Essas tentativas de servir-se da Igreja para fins políticos e a culpável condescendência de certos homens da Igreja em consentir que a organização eclesiástica fosse usada para interesses políticos, como preço de vantagens seculares, pode chamar-se pragmatismo sociológico. Voltaire o conhecia. Ainda que ele rejeitasse as “superstições infantis”, estava convencido de que a sociedade e o Estado precisam da Igreja para o governo da plebe; o padre é o melhor policial, e muito mais barato, que o gendarme. Taine considerava pior para a nação do que para a Igreja, a crescente infidelidade da plebe. Napoleão e muitos césares industriais chegaram a repetir: “A religião deve ser conservada para a plebe.” Não acreditavam, todos eles, na doutrina cristã. Alegavam mesmo que podiam dar-se ao luxo de ser incrédulos, mas que a doutrina é útil para proteger-lhes os interesses. Esse pragmatismo sociológico chegou a seu auge nos escritos de Charles Maurras, o qual se declarou: Catholique, mais athée. Le catholicisme, c’est l’ordre. Fez aguda distinção entre o elemento cristão e o católico. O elemento cristão é o espírito do Evangelho, o amor do Sermão da Montanha, o individualismo de Lutero, que pôs a Bíblia nas mãos da plebe sem instrução, preparando-a para a revolta. O elemento católico é a ordem concisa do dogma de Roma, o poder monárquico autoritário do papa, assentado na admirável disposição do direito canônico. É, para Maurras, a única defesa contra o anarquismo revoltoso das ideias de 1789 e da democracia moderna. 

Na base de todo esse pragmatismo sociológico apóia-se a seguinte suposição: A Igreja desempenha suas tarefas, ensina seus dogmas, administra os sacramentos, consola os infelizes, admoesta os poderosos e ajuda a autoridade política a estabelecer a boa ordem, não para que os homens possam viver e trabalhar pela salvação de suas almas; não, tudo isso ela o faz pela “cultura”. A cultura é um luxo ao lado do desagradável e humilhante pulular das necessidades da vida; a cultura é um divertimento, divertimento de uma pequena classe governante de senhores. Cabe à Igreja e a sua doutrina, no interesse desses senhores, transferir para o outro mundo os efeitos das doutrinas cristãs, que oferecem tanto perigo para essa cultura aristocrática; deve torná-los inofensivos à cultura. O catolicismo, como princípio da ordem, – eis a cápsula que encerra o veneno, as “ideias cristãs”, para preservar a plebe – torna possível a cultura.

Como a própria Igreja, a filosofia política, brotando-lhe do seio, não pode ser reivindicada por nenhuma das formas históricas da vida política. Tal reivindicação estaria em contradição com a sua origem essencial, a ideia da lei natural, que em certo modo representa a conexão entre o mundo e a Igreja. A lei natural, como a continuação da metafísica, é a norma fundamental de toda atividade moral e prática e, por conseguinte, também da política. É a lei eterna a emanar do ser e da vontade de Deus, como a revelação e a graça sobrenatural, e que é reconhecida pelas criaturas humanas, dotadas de razão e livre arbítrio, como lei natural, como regra dos atos humanos e sua norma crítica. Por conseguinte, como regra também e norma da vida política. Ora, a lei natural reclama a lei positiva, para se concretizar em cada situação histórica, em circunstâncias que vão sempre mudando. A ordem natural reclama uma lei positiva concreta, entre as nações e nas nações, hic et nunc. Nem o conjunto das leis positivas da vida política, nem alguma delas em si mesma, constitui a ordem natural, ainda que esta última seja a regra de conduta e a norma de julgamento para qualquer ordem positiva.
(Excerto de “O Estado no Pensamento Católico”, de Heinrich Albert Rommen)