“Eu
me vou embora; então me haveis de procurar! Mas haveis de morrer nos vossos
pecados!” (Jo 8, 21-59).
Em
parte alguma a expressão ‘tiroteio de palavras’ é tão bem empregada com nas
disputas entre orientais. Já a palavra ‘tiroteio’ é muito expressiva neste
sentido, porque começam estas contendas, ora contra qualquer previsão, ora
depois de uma reflexão devidamente premeditada, e porque, em casos dados, uma
disputa dessas, principiadas como que casualmente, vai tomando proporções de um
combate decisivo. Estas disputas não são entrevistas em que se procede de
determinado plano e em que se vão aduzindo argumentos um por um, até formar uma
série concatenada. Logo de entrada a linguagem se inflama nos sentimentos
agitados e é encaminhada por eles. Uma objeção segue à outra, sem que se pense
em solvê-las; um revide segue o outro; novas investidas, baseando-se em pontos
semelhantes, dão azo a observações intermediárias.
Enganar-se-ia,
todavia, quem pensasse que o modo de ver de ambas as partes desta forma não se
fosse esclarecendo. Ao contrário: – no fogo destas disputas surgem, no meio da
mais viva altercação de investidas e revides, como lampejos, as mais incisivas
expressões.
Semelhante
contenda, que terminou num combate decisivo, originou-se na festa dos
Tabernáculos entre Jesus e os fariseus.
‘Abraão
– nosso pai Abraão – filhos de Abraão – povo de Abraão!’ Estas palavras sempre
de novo ocorriam nos discursos dos fariseus. Deus prometera a Abraão fazê-lo
pai de um grande povo e abençoar por ele a todos os povos. Orgulhavam-se nesta
promessa, já não pensando propriamente no Deus que tudo lhes dava, mas em si
mesmos que, como descendentes de Abraão, podiam como que exigir dele que a
cumprisse. Chegavam até à opinião, como diz São Justino, de que Deus não podia
sequer repudiar um descendente de Abraão.
Começam
como que casualmente. Jesus declara-lhes que o tempo do arrependimento e
conversão já estava quase a terminar. Se não aceitassem o verdadeiro Messias,
de nada lhes adiantaria crer num falso Messias. ‘Eu me aparto de vós; então me
haveis de procurar! Mas haveis de morrer nos vossos pecados! Para onde eu vou,
não me podeis seguir!’
Dizem
entre si: ‘Acaso ele quer tirar a si mesmo a vida, dizendo: Para onde eu vou,
vós não me podeis seguir?’
Forçosamente
devia tratar-se de uma morte em pecado, de um suicídio; pois, para o céu, eles,
os eleitos, por certo o poderiam seguir!
Jesus
retorque-lhes abertamente: dá-se exatamente o contrário. Eles é que são
pecadores! ‘Vós procedeis de baixo, eu procedo do alto! Vós sois deste mundo,
eu não sou deste mundo! Por isso é que eu vos disse que haveis de morrer nos
vossos pecados. Se não crerdes que eu o sou, haveis de morrer nos vossos
pecados!’
‘Quem
eu o sou!’ Compreendem que Jesus, por estas palavras, se propõe como o Filho de
Deus; daí eles se precipitam a esta expressão: ‘Mas
quem és tu?’
‘Para
que é que eu ainda vos estou a ensinar? Quanto a vós, ainda, é certo, muito vos
teria que dizer e que julgar. Mas aquele que me enviou é verdadeiro e o que eu
dele ouvi, anuncio no mundo. Quando exaltardes o Filho do Homem, então haveis
de compreender que eu o sou e que nada faço de mim mesmo, mas que anuncio
unicamente aquilo em que o Pai me instruiu. Aquele que me enviou está comigo.
Ele não me deixa sozinho, porque eu faço sempre o que ele quer!’
Muitos
nunca compreenderam a ideia diretriz de sua volta ao Pai do Céu, ou a perderam
de vista. Outros, porém, creem nele quando ele lhes fala em tom profético de
sua morte.
Dirige-se
Jesus aos de boa vontade e promete-lhes: ‘Se permanecerdes na minha doutrina,
sereis realmente meus discípulos. Haveis então de reconhecer a verdade e a
verdade vos há de libertar!’
Os
adversários novamente se agitam. O que lhes falava Jesus, como se eles
houvessem sido escravos, escravos da idolatria? Não possuíam eles acaso a
verdadeira fé? Acaso entre eles, como entre os gregos e romanos, adoravam-se
ídolos?
‘Nós
somos descendentes de Abraão, nunca fomos escravos! Como é que podes dizer:
Haveis de conseguir a liberdade?’
Jesus
retorque-lhes às palavras, como outras tantas setas: ‘Em verdade, eu vos digo:
todo aquele que comete um pecado é um escravo do pecado. Mas o escravo não fica
para sempre em casa; só o filho é que aí fica para sempre. Mas, se o Filho vos
dá a liberdade, sereis realmente livres!’
O
nome de Abraão, que eles pronunciam, assemelha-se à explosão da raiva
acumulada. Jesus objeta: ‘Eu
bem sei que sois descendentes de Abraão. Entretanto vós vos estais esforçando
por matar-me, porque a minha palavra não é recebida no vosso interior. O que eu
vi ao lado de meu Pai, eu anuncio. Vós, pelo contrário, fazeis o que tendes
ouvido do vosso pai.’
Na
excitação em que estavam, não compreenderam a misteriosa distinção: –
Jesus tem um Pai, que pode ver e ouvir; eles, porém, têm um pai, que apenas
podem ouvir. Sobre excitados, dizem consigo mesmo: Que está ele aí a falar de
um Pai além de Abraão? E eles se obstinam em afirmar: ‘Nosso
pai é Abraão!’
Jesus
responde: ‘Se
sois filhos de Abraão, então fazei também as obras de Abraão! Agora, porém,
procurais matar-me a mim que só vos anuncio a verdade, que recebi de meu Pai;
tal coisa Abraão não fez! Vós estais a pôr em prática as obras de vosso pai!’
Jesus
ainda não cita o nome do ‘pai deles’. Estão excitados: Quererá ele acaso
afirmar que eles não servem ao Deus verdadeiro?
‘Nós
não somos filhos da infidelidade? Deus é nosso único Pai!”
Conforme
uma tradição, os sacerdotes, durante a caminhada para o portal da água, exclamavam:
‘Javé é nosso pai; para Javé nossos olhos estão dirigidos!’ A resposta dos
judeus adapta-se evidentemente a esta exclamação: é bastante substituir-se a
palavra Javé, que não podia ser pronunciada, por Deus. Jesus cita expressamente
a frase, ao responder-lhes: ‘Se
Deus fosse vosso Pai, haveríeis de dedicar-me amor; pois eu procedo de Deus e
dele venho. Não venho eu, pois, do que me é próprio, mas ele foi que me enviou!
Por que não penetrais naquilo que vos anuncio? Por que não podeis suportar as
minhas palavras? Tendes o demônio por pai e esforçai-vos por cumprir os desejos
do vosso pai. Assassino tem sido ele desde o começo – ao assassínio ele vos
instiga! – e ele não subsistiu na verdade, porque a verdade não está com ele;
sempre que ele mente, revela-se a si mesmo, porque é um mentiroso e o pai da
mentira. A mim, entretanto, não acreditais, porque eu vos ensino a verdade.’
Instando
seriamente, Jesus os convida ainda uma vez a livrar-se do sedutor. Eles, porém,
interpretavam as palavras como ofensas pessoais. A sua raiva explodia em
exclamações e gestos de indignação. Terá sido contra estas observações que
Jesus se dirige, continuando a falar: ‘Quem
de vós pode convencer-me de um pecado? E se vos anuncio a verdade, por que
então não me acreditais? Quem é de Deus, ouve as palavras de Deus. É por isso
mesmo que não atendeis a elas, porque não sois de Deus.’
Como
tantos golpes certeiros, estas frases foram saindo dos lábios de Jesus. Nunca
ele falara tão abertamente, sabendo que agora chegara o momento decisivo.
Eles
lhes atiraram em face: ‘Não
temos nós razão? És um samaritano e um possesso de espírito maligno!’
Um
samaritano! Um homem sem sentimento algum de nacionalidade! Mestiços são piores
do que pessoas inteiramente estranhas! Possesso de espírito maligno! Como
poderia um homem, em pleno gozo de sua inteligência, designá-los a eles, os
piedosos, com filhos do demônio?
Da
palavra ‘samaritano’ Jesus não se importa. No mais limita-se a repetir o que já
dissera e mostra que de nada o podem acusar, mesmo que suas palavras a respeito
deles pareçam duras e a seu próprio respeito tenham a aparência de arrogantes.
‘Eu
não sou possesso de um espírito maligno; eu apenas defendo a honra de meu Pai,
enquanto vós me desonrais. Mas eu não procuro a minha própria honra; há alguém
que vigia a meu respeito e julga.’ Ainda
uma vez ele os quer atrair com a promessa da vida eterna; volta, pois, aos
primeiros pensamentos que haviam dado ensejo a toda a questão.
‘Em
verdade, em verdade eu vos digo: Quem segue a minha palavra, eternamente não há
de ver a morte.’
Pensam
poder vencê-lo desta vez: ‘Agora
é claro que estás possesso de um espírito maligno! Abraão morreu e também os
profetas, e tu dizes: Quem atende à minha palavra, eternamente não
experimentará a morte. Acaso estás acima do nosso pai Abraão, que teve de
morrer? E os profetas também morreram. Que fazes de ti mesmo?’
Com
a comparação entre Jesus e Abraão, entre a sua vida e a vida de Abraão, eles tocaram
o âmago do coração de Jesus. Desculpando-se de antemão, antes do que iria
dizer, Jesus os adverte: ‘Se
eu mesmo me gloriasse, a minha glória não teria valor. Mas meu pai é que me
glorifica, o mesmo Pai que chamais de vosso Deus; mas vós o não conheceis de
todo, ao passo que eu o conheço! Se eu afirmasse que não o conheço, seria um
mentiroso como vós. Mas eu o conheço, seria um mentiroso como vós. Mas eu o
conheço e atendo às suas palavras.’
Jesus
começa de novo; eles prestam a maior atenção.
‘Abraão,
vosso pai, exultou para poder ver o meu dia; ele o viu realmente e alegrou-se.’
Em
tom de caçoada eles objetam: ‘Ainda
não tens cinquenta anos e pretendes ter visto Abraão!’
Falam-lhe
de um modo como se ele próprio, com as suas palavras, se tivesse aniquilado.
Ergue-se
então Jesus. Parece operar-se nele uma transformação, uma revelação do seu
interior. Ele fala com solenidade: ‘Em
verdade, em verdade eu vos digo: Antes que Abraão existisse, eu existo.'
Declara-se
Jesus como sendo eterno e participante da natureza divina!
Deve-se
ou crer nele ou tratá-lo como um blasfemador! – No pátio interior do templo
havia muitas pedras, pois que nunca cessavam as construções aqui e ali. Cheios
de indignação, eles se curvam para apanhá-las. Jesus, porém, evade-se – a hora
da sua morte ainda não havia chegado, embora os assassinos já estivessem
prontos.
Ao
lermos este discurso, parece-nos longo e cheio de repetições. Na realidade, as
frases e respostas vão se seguindo umas às outras rapidamente, entrelaçando-se
como rodas dentadas e tocando-se em voz alta e com forte acentuação.
Exteriormente Jesus se mostrou arrebatado pela troca de palavras, defendendo-se
de cada investida com um novo golpe e uma nova revelação, até que a resposta à
sua última frase já não foram palavras, mas pedras.
(Franz
Michel Willan)