De
Diógenes, filósofo
Vendo um moço galhardo, mas de ruins
costumes, disse: ‘As casas são formosas, mas o morador infame.’
REFLEXÃO
Arriscado é a este mal aquele bem: ‘Lis
est cum forma magna pudicitia’ (Há grande luta entre a virtude e a
beleza. Ovídio) – porque está mui perto de ser vistoso o ser visto,
e do ser visto o ser cobiçado; com que sucede aos filhos de Eva entre si o que a
ela sucedeu com a maçã: ‘Vidit mulier quod bonum esset lignum ad vescendum, et
pulchrum oculis, aspectuque delectabile, et tulit de fructu illius, et comedit’
(Viu a mulher que a árvore era boa para comer, e formosa aos olhos, e
deleitável à vista: e tirou do fruto dela, e comeu. – Gên. 3, 6). – Por isso
disse Tertuliano, que a formosura não a devemos acusar, porém devemo-la temer;
acusar não, porque é favor da mão divina; temer sim, porque é provocativo dos
olhos humanos: ‘Et si accusandus decor non est, ut felicitas corporis, ut
divinae plastice accessio, ut animae aliqua vestis urbana: timendum tamen est,
vel propter injuriam, et violentiam spectatorum’ (Lib de Cultu Feminae).
De
Apeles, célebre pintor
Vendo este que um de seus discípulos
havia pintado a celebrada Helena com pouco primor quanto à formosura, e com
muito ornato quanto à riqueza, disse-lhe: ‘Mancebo, sabeis vós por que a
pintastes tão rica? Porque a não soubestes pintar formosa.’
ANALOGIA
E INVECTIVA
O que este aprendiz fez neste quadro,
para cobrir a falta de arte, fazem muitas com sua pessoa, para cobrir as faltas
da natureza; querem remir a sua fealdade à custa do alinho curioso e do
precioso ornato; ‘Quibus de proprio non inest decor – disse São Bernardo –
aliunde necesse est ut mendicent, unde se speciosas mentiantur’ (Serm. 41 in
Cant). – Porque a Esposa de Salomão não era assim, disse este dela, que ‘collum
tuum sicut monilia’ (Cânt 1,9): A vossa garganta é como as gargantilhas. – Isto
é: muito bem pode escusar o adorno delas, pois, o favor da natureza antecipou a
necessidade de formosura emprestada.
Também se pode aplicar esta sentença de
Apeles – sublimando mais o sentido dela – aos pregadores amigos de adornar os
seus sermões com descrições poéticas, palavras cultas e seletas, conceitos de
filigrana, delicados e reluzentes, questões escolásticas e outros enfeites
semelhantes. Sabe, padre, por que se vale destas coisas para compor um sermão?
Porque lhe falta cabedal e juízo para o compor de Escrituras Divinas bem
aplicadas, sentenças dos santos padres, exortações nervosas, colóquios cheios
de fervor espiritual, e casos de doutrina exemplar. Pinta a Helena rica, porque
a não sabe pintar formosa, ou, para dizermos o certo, nem formosa nem rica a
pinta, porque todo esse ornato falso é missanga, que agrada a pretinhos, e não
pedraria fina, cujo valor estima quem lhe conhece os fundos. Helena finge que
nasceu de um ovo descido do céu; estoutras, que os pregadores da moda pintam,
sem ficção podemos presumir que nascem de ovos subidos do inferno, porque estes
pregadores, com a laboriosa incubação de seus estudos, o que chocam não é mais
que apetite de glória própria, ou interesse temporal, que são os ovos que os
demônios – inimigos do fruto da palavra de Deus – tinham posto e aninhado nos
seus corações; e neste aplicar-se com fadiga para sair com coisa de que Deus se
ofende, se verifica o que disse Isaías: ‘Loquuntur vanitates, conceperunt
laborem, et pepererunt iniquitatem: ova aspidum ruperunt’ (Falam vaidades,
conceberam o trabalho, e pariram a iniquidade; eles romperam ovos de áspides –
Is 59, 4s).
De
Aristóteles
Perguntou um a este filósofo por que
razão as coisas formosas se amavam? Respondeu: Essa pergunta é de cego.
RACIOCÍNIO
Claro está que o objeto do amor é a
bondade; e a formosura não é outra coisa que a flor da bondade, como lhe chamou
Marsílio Ficino: ‘Florem bonitatis’ (In Plutonis Syxposium); e outros lhe
chamam ‘Escam boni’: a isca do bem. Nesta isca, pois, prendem as cintilas do
afeto, que estão saltando do coração humano; e, assim, dizer o filósofo essa
pergunta é de cego era o mesmo que dizer-lhe: Ou tu careces da vista corporal,
ou da do entendimento, porque ou não ves que a formosura é boa, ou não alcanças
que a bondade tem consenso com a nossa vontade, assim como a verdade o tem com
o nosso entendimento. Mas, se alguém pergunta em que consiste este consenso,
parece que satisfaz o padre Eusébio, dizendo: ‘Sunt in pulchris, et musicis
lineamenta rationis, cujus dos, et gloria est ordinare omnia: Constant illa
ordine, et proportione ob istam mentis umbram plus delectant, gratis diu
sapiunt originem suam... Igitur rationis beneficium est quidquid deletat (Euse.
Nieremberg., lib. 5 de Are volunt., c. 16): Há na formosura e na música certos
lineamentos ou debuxo da razão cujo ofício e louvor é pôr em sua conta todas as
coisas; e, como a formosura e a música constam de ordem e proporção, por esta
sombra do racional deleitam mais ao homem, pois neles sente oculto parentesco, e
lhe sabem à sua origem; assim que tudo o que deleita é por benefício da razão.
(Padre Manuel Bernardes, 1644-1710,
excerto de “Nova Floresta”, volume VIII)
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