Sem
sombra de dúvidas podemos asseverar que foi nessa altura que nosso século XX
manifestou, ora com arrogância, ora com cinismo, todas as vicissitudes de
loucura e desespero que, desde o berço, trazia em seus cromossomos históricos.
Desde
logo convém assinalar o caráter oscilante e ciclotímico de nosso século, onde
se alternam ou se defrontam situações de depressão e situações de exaltação.
Nas primeiras, os homens rejeitam todas as dimensões transcendentes e se
comprazem num imanentismo, num ideal de térmita, ou de átomo; nas segundas, ao
contrário, exaltam todos os seus títulos de glória num delirante esquecimento
de sua miséria. Os mais expressivos exemplos de depressão histórica nos são
proporcionados pelos socialistas que, desde a revolução russa em 1917, ganham
raízes e espaço vital; o tipo oposto é, por sua própria índole, diferenciado em
gostos, timbres e matizes do mais variado valor moral, desde a cavalheiresca
Falange de José António Primo de Rivera até o teatral fascismo italiano, o
cômico integralismo brasileiro e o demoníaco nazismo. Depressão e exaltação,
duas formas da mesma desesperança, que é o mal do século. Depressão e
exaltação, duas baldadas tentativas de realizar, no mundo e na carne, a
“exaltatio” e a “exinanitio” que só se realiza em perfeita conjunção na Cruz de
Nosso Senhor. E os dois estados, ora alternados, ora confrontados, às vezes se
entrecruzam e então vemos os imanentistas, os aspirantes à terra, bruscamente
possuídos de um ardor de violência que parecia apanágio exclusivo do outro
semiciclo da loucura. E também vemos os exaltados, os sequiosos de heroísmo e
de júbilo de viver de repente inclinados, e irresistivelmente levados ao suicídio.
Penso com dolorida simpatia num Drieu La Rochelle, num Brasillach, num José
António, e acho simplesmente cômica a denominação comum “fascistas”, com que as
esquerdas convencionaram designar os homens mais diferentes do mundo, que só
tinham em comum a exaltação.
Por
essas e outras, a década dos trinta é a da maior densidade de equívocos de
todos os tempos. O jogo esquerda-direita, acelerado, encherá o mundo de moeda
falsa.
Outra
evidência dessa época, que costuma passar despercebida, é a da dupla guerra
civil. Todo o mundo sabe que houve na Espanha, motivada por incríveis abusos
cometidos pelos comunistas e anarquistas desde 1931, uma guerra civil
violentíssima entre 1936 e 1939, com enorme derramamento de sangue. Mas pouca
gente sabe que, no mesmo período, houve uma guerra civil na França, movida
pelos mesmos agentes ditos de esquerda. Há, entretanto, entre a guerra civil da
Espanha e a guerra civil de França certos contrastes que merecem reparo. A
primeira foi estridente e espetacular, a segunda foi invisível; a primeira
destruiu igrejas, incendiou cidades, fez heróis e mártires, a segunda destruiu
valores espirituais, fez traidores e apóstatas que se entregaram aos piores
inimigos da Igreja. E em vez de sangue derramou muita tinta, sem falar na outra
substância histórica a que aludia Bernanos.
A
Frente Popular na Espanha foi
finalmente vencida; o Front Populaire da
França arrasou a França, desarmou-a, venceu-a, preparou-a enfim para a
humilhação de 1940 e para a vergonha de 1945. O movimento espanhol chamou-se de
alzamiento; a invisível corrosão da
França mereceria o nome de abaissement ou
outro equivalente. E é nesta década de 30 que se inicia essa derrocada francesa
que é, sem possível contestação, o principal fator da crise espiritual do moderno
mundo católico. O mais belo e glorioso dos reinos católicos ficou “comme um vieux
Lion rongé par la vermine”. Mas ainda é na França católica que surgem hoje os
mais vigorosos sinais de resistência, da verdadeira Résistance em que todos nos devemos arrolar na defesa do que ainda
há de cristão em nossa civilização. Acho inconcebível um mundo sem a França,
sem “La France des Bourbons, des Mesdames Maria, Jeanne d’Arc, et Thérèse, et
Monsieur Saint-Michel”.
(Gustavo Corção,
excerto de “O Século do Nada”)