quarta-feira, 22 de junho de 2016

214ª Nota - Como se comprova a existência de Deus e a imortalidade da alma


A) DEMONSTRAÇÃO PELA “VIDA DO ESPÍRITO”
B) PELA VIDA MORAL E PELO DESEJO NATURAL DE BEATITUDE

1. Contradição do ceticismo

Os resultados a que até agora chegou nossa investigação podem ser assim resumidos: a) a mente criada e finita conhece verdades imutáveis e necessárias, tendo delas uma intuição originária, se bem que obscura e confusa: estas verdades lhe estão presentes, são interiores; b) a razão se serve delas para julgar todas as coisas; c) estas verdades são as que nos ensinam, como um “mestre interior”, a presença de Deus em nós; d) existe a Verdade, portanto Deus existe. Se não existisse, nós mesmos não existiríamos e nem sequer poderíamos dizer que Deus existe, porque careceríamos de inteligência. Aristóteles escreve dos céticos de seu tempo: “assemelham-se mais às plantas que aos homens” (Met., 1. IV, c. 3); o ceticismo de qualquer época termina fatalmente, mais cedo ou mais tarde, por rebaixar o homem ao puro nível biológico.

A observação de Aristóteles, profundíssima, merece um breve comentário. O cético nega que o pensamento humano seja capaz da verdade que lhe compete: feito para a verdade, não a conhece; portanto, seu valor e seu ser são nulos. Mas o homem é homem pelo pensamento (inteligência e razão): negar um é negar o outro, é fazer com que o homem se assemelhe mais às plantas que ao homem que realmente é. Isto é: pensamento, sem seu  objeto natural, que é a verdade, é o não-pensamento; o homem que é não-pensamento é não-homem: um puro vegetal ou um puro animal (nível biológico). Então, qualquer questão sobre o homem já carece de sentido, mas, precisamente por isso, o ceticismo não tem sentido; já é contraditório em seu próprio enunciado: autonega-se.

E não é só o ceticismo, mas também toda posição filosófica que negue uma verdade objetiva é negação do pensamento e, portanto, do homem: por exemplo, o idealismo historicista e dialético. Se a verdade e sua validade são históricas, então o pensamento grego é a verdade “histórica” da antiguidade e o cristão a verdade “histórica” do mundo moderno, etc. Isto significa simplesmente que o homem não é capaz de verdade e que não há verdade, porque a verdade significa isto: verdade e não outra coisa; nem antiga nem medieval, nem moderna, mas tão somente verdade – descoberta na antiguidade ou no medievo, pelos gregos ou pelos italianos – válida para todo ente pensante, uma vez que foi descoberta e conquistada pelo pensamento. Se a verdade é dialética e a dialética é a essência do real, segue-se também que nada tem ser e nada é verdadeiro: a realidade ou a verdade de cada ente está em “relação com” seu contrário, onde se nega e se conserva dialeticamente. Nenhum ente é o que é: é só em seu conservar-se destruindo-se; nenhum ente tem uma realidade ou essência sua, e a verdade não é tal.

Nós defendemos a presença objetiva da verdade na mente, porque só assim se pode defender a validade do pensamento e, com ela, o homem: perder a verdade é perder o pensamento, esvaziar o homem de si mesmo, de sua natureza, fazê-lo semelhante (como disse Aristóteles) às plantas e às bestas. Por outro lado, se se nega validade objetiva ao saber humano nega-se o fundamento natural do revelado, isto é: a base da fé. A quem falaria Deus se o ente pensante não possuísse a luz objetiva do intelecto e o poder discursivo da razão? Sua mensagem aos homens teria, em tal caso, o mesmo sentido que para as plantas e os animais, isto é: nenhum sentido. Ou tantos sentidos variáveis quantas fossem as posições dialéticas, isto é: tampouco teria um sentido sensato.

2. A prova pela vida moral

Até agora insistimos sobre a atividade intelectiva, porque a prova não parecesse prejulgada por outros elementos e, sobretudo, porque qualquer prova possível da existência de Deus pressupõe a prova “pela verdade”. Mas agora é necessário analisar os outros aspectos da vida do espírito, a fim de que a prova manifeste toda a sua aderência ao homem na plenitude de sua integralidade e revele toda a sua força normal.

A verdade originária presente à mente não interessa só à vida intelectiva, mas também a todas as formas de nossa atividade. Inclusive a vida moral tem seu fundamento nos princípios originários que guiam, orientam e informam toda ação, ainda que nenhuma os iguale: são sua medida sem ser por ela medidos. A ação “boa” ou “justa” não faz com que exista a bondade ou o dever, mas ela não seria boa ou justa sem a bondade e o dever, que, por sua vez, existiriam igualmente ainda que o mundo não fosse ou nunca houvesse acontecido nele uma ação boa ou conforme ao dever. Podemos concluir que: os valores morais não existem porque existem as ações que os expressam, mas sim estas existem na medida em que aqueles existem e preexistem a todas as ações e lhe são independentes.

Os valores morais são, antes de tudo, verdades objetivas, intuídas pela mente; neste sentido, ainda que “práticos”, são teóricos: regras da vontade, que está obrigada a subordinar-se a eles, e aos quais se subordina e se adapta cada vez que lhe “reconhece” verdade e virtude; então se constitui em vontade que quer segundo a ordem moral. A razão especulativa julga todas as coisas segundo os princípios primordiais do juízo; a razão prática julga toda ação segundo os valores morais que são verdades (e como tais “teóricos”) reguladoras da vontade e de nossa conduta e que, por isso, têm um uso prático. Em consequência, assim como à mente são dados os princípios fundamentais do conhecimento, também lhe são dados os de querer. Do mesmo modo como pela presença em nós de verdades especulativas se argumenta sobre a existência de Deus, como Verdade em si, pela presença dos valores morais se argumenta a favor da existência de Deus como Valor absoluto e sumo Bem. A argumentação é idêntica à que foi desenvolvida a propósito da prova “pela verdade”: a mente humana é capaz de conhecer valores morais absolutos que constituem a vida, a força e a eficácia da vontade, que é como que a reveladora deles. Os valores não são criados pela mente ou pela vontade, nem induzidos “a posteriori” da experiência, a qual, ao contrário, os pressupõe. Portanto, existe Deus como Valor absoluto ou absoluta Vontade criadora de todos os valores e que é seu fundamento e seu sustentáculo.

O bem moral é também “atrativo”; sua “atração” confere à prova uma nova dimensão e revela toda a sua potência dinâmica. Objeto natural da vontade é o bem, sua verdade; ela é atraída por ele, mesmo que o desconheça ou se rebele contra ele: o arrependimento do mal feito, desforra do bem, é obra de sua força de atração. O bem é o princípio motor da vontade e o elemento informador das volições. Não há felicidade sem bem; a felicidade de todo ente espiritual é sua posse; logo, o bem é o princípio de toda a nossa ação. Há uma intuição intelectiva do bem, uma presença, que é presença de Deus como sumo Bem. Mais ainda: não somente há intuição, mas também uma imagem real d’Ele e, portanto, a relação entre o bem intuído e Deus como sumo Bem é sempre analógica. Intuição operante, criadora; conhecer o bem é querê-lo, é amá-lo, ser atraído por ele; ele gera o movimento da vontade e concentra nossos esforços para o mesmo fim, que não é só o bem que o ente finito pode conhecer e praticar, mas também, através deste, é o sumo Bem, que transcende todo bem e o fundamenta.

Amar o bem, é obrar no bem; deste modo se o possui. As ações boas são as respostas verdadeiras que damos ao objeto de nossa suprema aspiração. Só quando o bem se torna regra constante e contínua da conduta, o ente racional, estimulado interiormente pela atração do sumo Bem, caminha e se aproxima sempre mais da meta. É a sabedoria. Mas sabedoria dinâmica, inquieta e ativa, rica e indigente, suscitadora de respostas sempre novas segundo a norma reguladora e orientadora. O sumo Bem, luz da mente e da vontade, iluminando, ama: Deus ilumina e sua luz é amor; nós nos iluminamos amando-nos e amando aos outros entes criados. O amor é a atração do bem. Deus é a atração absoluta do Bem absoluto. O dinamismo da vontade, à qual está presente o bem, está originariamente orientado para o sumo Bem ou Deus, centro absoluto da atração, unificador de todos os seus esforços, que, de outro modo, seriam inexplicáveis e ininteligíveis.

O ente espiritual finito possui então, portanto, o desejo natural do sumo Bem, absoluta e infinitamente perfeito.
(Michele Federico Sciacca)