Lembra-me
aqui um manual marxista que me chegou às mãos, e em que o autor, para combater
o que ele chamava de espiritualismo, prova a não existência da liberdade com um
argumento deste quilate: um orador tem necessidade de beber água porque a
prolongada eloquência seca a garganta. Bebe-a, então, por esse motivo físico e
fisiológico, e não por livre arbítrio. Não me consta que tenha existido algum
autor tão desvairadamente espiritualista que tenha chegado a negar a existência
da garganta. O orador bebe água, efetivamente, porque a garganta secou. Esta
explicação se enquadra bem em qualquer doutrina filosófica e em qualquer
religião. É uma explicação sucinta e clara. Mas o que já não é tão claro, sobretudo para um marxista, é o motivo da eloquência. E se nós adicionarmos à
pregação marxista as notas de fervor e de patético que costumam acompanhar a
eloquência, ficará cada vez mais misteriosa a atitude daquele indivíduo que
agora, num momento de clara racionalidade, bebe o seu copo d’água. O marxismo,
como ninguém ignora, é uma grande aventura que tem por objetivo purgar a
história do homem do espírito de aventura. Será a última aventura para acabar
com a aventura, o último ímpeto de fervor para matar o fervor, o último esforço
de heroísmo.
(...)
O
evolucionismo é também uma doutrina nascida da mesma incapacidade de
compreender, de suportar o aspecto de aventura que põe um frêmito na história
do mundo. A variedade das espécies aparece diante desse tipo de observador como
uma intolerável desordem. Sendo admissível que se busque, com o critério da
economia de causas, a melhor explicação da diversidade, o evolucionista leva ao
paroxismo essa razoável tendência, com a insensata ideia de abafar no
nascedouro o que lhe parece ser um prurido de desordem. Ele quer inculcar ao
universo uma disciplina de internato, e sonha pôr em ordem de marcha, em fila,
todas as coisas do universo, desde o caramujo até o descobridor do pólo Sul. O
existencialista, ao contrário, pretende libertar o homem das concatenações que
o princípio da economia lhe impõe, deixando-o sempre no limiar de uma aventura.
O homem não tem natureza: está sempre na origem; está sempre nascendo, úmido
sempre das águas genesíacas. Será nessa mensagem que tanto valoriza o concreto,
a experiência própria, que eu deveria buscar minhas lições de abismo?
(Gustavo
Corção, excertos de Lições de Abismo)